Rui Sousa: “O livro resultou sobretudo da percepção de que o tema era praticamente desconhecido por cá”
1-Qual a ideia que esteve na origem deste seu livro “Do Libertino”?
R-O livro é a concretização de um percurso de interesse pelo Surrealismo português e seus arredores que teve início por volta de 2007, quando frequentava o mestrado. Num primeiro momento, interessou-me a questão do Abjeccionismo, tema que estudei com alguma profundidade e que ainda está bastante presente neste livro. Luiz Pacheco é um nome decisivo nesse contexto, e provavelmente o que mais ampla e demoradamente teorizou as implicações da sociedade abjecta do Estado Novo (e não apenas, qualquer sociedade totalitária ou avessa à polémica e à afirmação de personalidades exemplares) no modo como se processam as diferentes etapas de um percurso literário – da vida quotidiana às condições de produção, destas ao processo editorial, e depois à conformação de uma determinada imagem pública do escritor. Quando avancei para o Doutoramento, o interesse por Pacheco conduziu-me a querer saber mais sobre o conceito de “libertino”. Foi um desafio considerável, muito surpreendente, com etapas algo desesperantes, mas conseguiu-se chegar a algum porto (não sei se bom ou não, mas um porto).
O livro resultou sobretudo da percepção, por parte de pessoas próximas, de que o tema era praticamente desconhecido por cá, sobretudo em termos da amplitude com que procurei lê-lo; o interesse pelo Surrealismo português e por Luiz Pacheco é, também, crescente e, portanto, considerei que estavam reunidas as condições para, com uma série de intervenções inevitáveis, converter uma tese universitária num livro que, sem esconder as suas origens, creio que é um objecto distinto. Dos méritos e deméritos que possa ter, outros falarão (ou não, claro). Importa ainda sublinhar que, sem a aposta do Jerónimo Pizarro, nada feito, tal como sem a magnitude da determinação, cuidado e talento amplo da equipa da Tinta-da-china, um orgulhoso estar no catálogo, um prazer e uma simpatia humana cada vez que lá se vai e se traz sempre mais uma coisa excelente que saiu. É como a livraria Snob, na qual fiz o lançamento. Ainda há gente porreira por aí. Andam muitos chicos espertos a dizer mal da editora sistematicamente mas é o costume, só para aparecer e fazer comércio da maledicência, sapateiros do fel.
O Jerónimo já andava há imenso tempo a querer que eu publicasse coisas pessoanas, estudos e sobretudo edições críticas do que ainda há por conhecer. Acabou por não dar, porque por vezes o meu caos é considerável e devo dizer que também desconfio um bocado destes excessos pessoanos. Mas há aí uma coisa em preparação que resulta do meu pezinho nos meandros de Pessoa e o trabalho que fiz com gente como o Jerónimo, o Steffen Dix, a equipa do Estranhar Pessoa e sobretudo a Pessoa Plural, orgulham-me e deixam-me meio por dentro da coisa. Mas aquilo de que eu realmente gosto é de conceitos, de os explorar e conjugar de modos meio imprevistos, de olhar as panorâmicas e as continuidades, de pensar nos sedimentos, nos efeitos do histórico-literário, da história literária dos escritores e das tangentes interdisciplinares… misturar literatura, história, filosofia, ciência política, e aquelas coisas do Damásio, da neurobiologia, ou de pensar o que na cultura humana é produto da biologia, da homeostasia… Isso são as coisas que me interessam apesar de saber pouco sobre isso tudo, porque isto de ter tempo para ler e pensar num contexto de burocracias, projectos, concursos, revisões por pares, congressos, edições, tratar de provas tipográficas de tanta tralha, ajuda pouco. Mas enfim, essa desconfiança face ao consolidado e a necessidade de expandi e misturar e abandalhar as normas será provavelmente uma lição libertina, e talvez a única que me ficou colada ao corpo e ao pensamento. Essa e a valorização dos amigos, do amor, da liberdade, do conhecimento e dos momentos em que temos de ser tortos, dizer um bocado mal, ser talvez injustos, fazer umas frases de efeito, mas ficar estagnado e na paciencia não me dá jeito… Sou demasiado do caos, de explodir. Libertinagem de temperamento? O livro o dirá. Marialva, pelo contrário, nunca. Só não é uma lição porque já me repugnava antes essa sordidez machista e taberneira (no mau sentido, que beber um copo, petiscar algo e conversar com amigos é sempre bom).
2-O livro propõe uma abordagem mais ampla do tema: qual a sua visão sobre a amplitude do tema?
R- O livro propõe uma amplitude significativa sobre o tema sobretudo atendendo a que este conceito, como uma série de outros, acabou por ser sujeito a uma série de conotações negativas e, ao mesmo tempo, por ser restringido a um sentido único, com uma determinada tradição e respectivos representantes icónicos, ficando outras manifestações e sobretudo as origens históricas profundas algo silenciadas. Quando comecei o trabalho em torno do conceito, também estava convencido de muitas coisas que depois fui desconstruindo; tinha uma interpretação do assunto muito na linha que está algures entre Laclos e Sade, ou seja, de um modo ou de outro inscrita no século XVIII e depois no ambiente decadentista de final do século XIX, com todas as questões relacionadas com a sexualidade, a transgressão erótica, a arte da sedução e do engano, o ataque frontal aos valores tradicionais, sobretudo em termos religiosos, em nome de uma experiência emancipada (e, por vezes, feminista) do amor, do prazer sexual, das identidades sexuais não normativas. É evidente que tudo isso é muito importante e que Luiz Pacheco tem isso em conta, e de modo muito expressivo e continuado. Mas o que acabou por me interessar, e as vias pelas quais cheguei lá são algo inesperadas – passam por um desvio pouco pensado a meio do Doutoramento que me fizeram mergulhar durante um tempo nas águas pessoanas e no interesse de Pessoa por um filósofo português contemporâneo de Montaigne, Francisco Sanches –, acabei por ler algumas coisas sobre Montaigne, Charron, os libertins érudits do século XVII, e, recuando mais um pouco, sobre as fontes de tudo isso na origem etimológica do termo (no contexto do Império Romano) e depois em contextos vários, incluindo o dos goliardos. O José Cardoso Pires, via Cartilha do Marialva, ajudou bastante, embora nele a dimensão erudita e filosófica da libertinagem continue algo associada ao sexo, às relações entre géneros, sobretudo por contraponto com o paroquialmente português modelo do marialva, como se pode ver também n’O Delfim. Mas a dimensão filosófica, erudita, literária, de clave profundamente ensaística e experimental, de questionamento do ser humano e da sua condição específica, acabou por me surgir como o ponto de partida de todas as libertinagens. Foi isso que procurei demonstrar e felizmente que Luiz Pacheco, António Maria Lisboa e a minha bagagem de estudo em torno dos surrealistas não me deixaram ficar mal. Sei que muito disto pode parecer conversa de académico, e que para algumas figuras do meio editorial e crítico, como para alguns meandros de uma certa mitologia da marginalidade e da boémia que ainda prosperam, algumas vezes com sinceridade e pertinência, outras vezes por folclore e empertigamento anedótico, ando há uns anos a viver à conta do estudo de uma série de gente com uma inteireza moral que não costuma reconhecer-se nos corredores dos centros de investigação. Até poderia concordar, se reconhecesse do outro lado da barricada um resquício genuíno dessa coluna vertebral de outras eras. Como estamos, não me sinto muito mal por estudar estes autores e por, não sendo nem de perto nem de longe um desses libertinos de fulgor, ter alguma da independência de pensamento que me interessou a estudar a coisa.
3-O que traz de novo o seu livro sobre o ser libertino no contexto da sociedade portuguesa do século XXI?
R-Bom, não sei se podemos falar propriamente de impacto na sociedade portuguesa contemporânea, porque o livro não pretende ser um panfleto de ideias nem se quer como objecto caseirinho, para o tuga ler e ficar a meditar nas suas excepcionalidades e misérias. O que penso que pode ser de reter nisto tudo é o exemplo dos libertinos e da sua coragem continuada, em diferentes contextos e face a diferentes regimes, expressa em declinações da luta pela liberdade individual. Nos tempos que vivemos, cá e lá fora, com a ascensão de tanto candidato a opressor e o renascimento de tantas múmias a que ninguém devia dar cavaco, de tantas tocas de coelho com Rainhas de Copas sem graça, e de desventuras parolas mas perigosas, parece que um pouco de libertinagem de corpo e de pensamento pode ser uma boa opção de resistência e de crítica, por e para quem o saiba e o queira fazer. O libertino romano era o escravo a quem se dera a alforria; o libertino moderno é o que conquista a sua liberdade para se assumir e manifestar sujeito e organismo autónomo. É provavelmente o que ainda nos resta. Dar uma certa continuidade a isso numa era em que já está tudo uniformizado no parque humano das redes sociais. Pode-se fazer frente ao ar vómito, porque a abjecção no fundo é intemporal. Com palavras-actos, com a polémica como forma da nossa permanência, que são lições do António Maria Lisboa bem vivas e que, nos seus melhores momentos, os cangalheiros do nosso meio conseguem prosseguir. Outras vezes é só fel, banha da cobra e paroquialidade invejosa. Mas é o que temos e pelo menos faz-se polémica e fugimos a essas formas de convivência estagnada e conivente de que os poderes e os senhores da identidade e família tanto gostam.
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Rui Sousa [Investigador do CLEPUL]
Do Libertino
Tinta-da-China 17,90€