Dois olhares em que há Sá Carneiro

A análise do que realmente lhes proporcionou essas auras fica muitas vezes relegada para o domínio do desinteresse, do receio de desagradar, pela falta de coragem de confrontar e afrontar os registos históricos, os documentos e os depoimentos que façam alguma luz sobre as opções, no caso políticas, mas também pessoais.
Sá Carneiro, aí está ele, nesse poço de contradições, no desenho de uma ruptura com o regime em que nasceu, e que renegou, mas que procurou transplantar, geneticamente renovado, para os tempos que se lhe seguiram.
Em época de biografias e análises várias, não admira que seja reposta uma obra com três décadas, de alguém que o acompanhou de perto – não só fisicamente – também ideologicamente.
Maria João Avillez registou-lhe os alentos e desalentos “ainda sobre (sic) o fogo e as cinzas de um desaparecimento próximo”, na expressão que lhe sintetiza a vida agitada e a morte trágica. Daí que, regista a autora, “a própria força das coisas impõe a ausência do grande juiz de sentimentos e valores”, que é o tempo, ou seja, a perspectiva histórica.
São as efemérides que vão ditando esta recuperação de líderes que o tempo esmorece, mesmo que os acólitos e partidários insistam em regularmente reavivar os seus nomes, na ambição de que esse passado dê corda ao presente. A perspectiva histórica, essa vai-se fazendo no princípio do contraditório das fontes e das interpretações – quando alguém ousa ir de encontro ao rasto deixado pelos antecessores.
E, assim, temos que esta reposição surge na sua versão de há três décadas, aquela que a autora considera, ainda hoje, com as palavras “mais adequadas para apanhar o voo de uma anima, as contradições de um homem, o galope de uma vontade, o sonho de uma vida”. Mas, diz, não voltaria a escrever o mesmo, que o tempo e a passagem do tempo sobre as coisas deixam marca e conferem peso. E se esvanecem marcas e retiram peso?
Já não exclusivamente sobre o primeiro grande líder do PPD que viria a fundar, mas na óptica da transição que protagonizou nos tempos do marcelismo, na ruptura de Sá Carneiro com Marcello Caetano, surge uma obra recente, igualmente de jornalista, mas com a marca de água da investigação académica. Resultou da elaboração de uma tese de mestrado.
Claro que os dois protagonistas caem igualmente no campo de análise: Marcello e o seu curso político, de homem de confiança de Salazar a obreiro da primavera que lhe tomou o nome; Sá Carneiro e o seu despertar católico para a política, a formação da chamada “ala liberal” (do regime) e a actividade parlamentar.
Aí, desde logo, o aclaramento do papel inicial de Sá Carneiro, o seu peso específico no “grupo de deputados ditos liberais”, mas em que pontificava José Pedro Pinto Leite, a sua figura mais destacada. E foi a morte prematura deste fundador e dinamizador da ala liberal (num acidente aéreo na Guiné-Bissau) que abriu “espaço de influência a Francisco Sá Carneiro”. Ou seja, o leitor que eventualmente embale no cotejo (destas e outras leituras) poderá ter uma nova perspectiva, e uma noção talvez diferente de quem foi Sá Carneiro, a sua carreira. E, já agora, talvez ajude a perceber um pouco de Marcello Caetano.
Em qualquer dos livros, num por razões óbvias (edição antiga, não “modernizada”), nota-se a falta de índice remissivo, um instrumento de grande utilidade na leitura e sobretudo na consulta.
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Joana Reis
A transição impossível
Casa das Letras, 16,50€
Maria João Avillez
Francisco Sá Carneiro – Solidão e Poder
Oficina do Livro, 14,90€