Do amor para sempre
CRÓNICA
|Rui Miguel Rocha
O que dizer de uma obra-prima? Apesar de datada por um machismo triste, é completamente actual na visão geral que tem do amor para sempre, do casamento como fim em si mesmo (os contos de fadas acabam com casaram e foram felizes para sempre, foram? para sempre? não será isso muito tempo?), nas relações humanas tão complexas como os seres que pensam e deixam de pensar quando a loucura aparece vinda não se sabe de onde. Uma espécie de Crime e Castigo em versão doméstica e ferroviária. O ciúme, a devassidão, a sonata, cantados ao nosso ouvido como se fôssemos nós os apaixonados, desapaixonados e desamparados agentes do amor e da fúria. E essa é a técnica do mestre: saber como nos colocar em relação à narrativa, estarmos por dentro dela e ao mesmo tempo, numa espécie de levitação esotérica, a vê-la lá de cima. Sentir desalmadamente como se fôssemos nós os traídos ou os executantes e examinar com a frieza dos médicos (aliás muito odiados), como se estivéssemos onde realmente estamos: de fora. É um livro também sobre o ciúme como sentimento de poder e fragilidade, do homem como ser cativo de si mesmo e dos sentidos onde se perdem a razão e o juízo. Quem nunca pecou que descubra por si mesmo ou saia da sala sempre cheia de gente.
“É que não existe um canalha que, procurando um pouco, não encontre canalhas piores do que ele, neste ou naquele sentido, e que, por isso, não arranje motivo de se orgulhar e de estar contente consigo próprio.” Pessimista ou realista? Talvez os dois ao mesmo tempo.
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Lev Tolstói
A Sonata de Kreutzer
Relógio D’Água