Delfim Sardo | O Exercício Experimental da Liberdade
1-De que trata este seu livro «O Exercício Experimental da
Liberdade»?
Liberdade»?
R- O livro tenta compreender o plano da arte contemporânea na sua relação com
as tradições das várias práticas disciplinares das artes. Num momento em que
parece não haver qualquer relevo nas práticas disciplinares artísticas, como a
pintura ou a escultura — ou até em que se torna difícil saber a que esta
nomenclatura se refere —, continuamos a encontrar, nos museus e galerias,
entidades artísticas que continuamos a reconhecer como pinturas, esculturas,
fotografias ou filmes. Partindo desta constatação, o livro tenta compreender
como é que as várias linhagens das práticas artísticas se relacionam com as
necessidades dos artistas contemporâneos, no pressuposto de que as questões das
artes são sempre problemas de representação. A estrutura do livro segue esta
tentativa: começa pela ideia de arte em sentido amplo, procurando a sua origem,
propondo depois entender, nas crises da pintura, da escultura, da utilização de
fotografia e filme e na tónica na corporalidade, como se constroem os
protocolos (entre artistas, instituições de mediação e espectadores) que
permitem reconhecer os objetos artísticos da actualidade como tais.
Necessariamente que esta é uma tentativa em aberto, funcionando o livro mais
como um mapeamento de situações geradas pelos dispositivos da arte, do que como
um esboço de resposta.
as tradições das várias práticas disciplinares das artes. Num momento em que
parece não haver qualquer relevo nas práticas disciplinares artísticas, como a
pintura ou a escultura — ou até em que se torna difícil saber a que esta
nomenclatura se refere —, continuamos a encontrar, nos museus e galerias,
entidades artísticas que continuamos a reconhecer como pinturas, esculturas,
fotografias ou filmes. Partindo desta constatação, o livro tenta compreender
como é que as várias linhagens das práticas artísticas se relacionam com as
necessidades dos artistas contemporâneos, no pressuposto de que as questões das
artes são sempre problemas de representação. A estrutura do livro segue esta
tentativa: começa pela ideia de arte em sentido amplo, procurando a sua origem,
propondo depois entender, nas crises da pintura, da escultura, da utilização de
fotografia e filme e na tónica na corporalidade, como se constroem os
protocolos (entre artistas, instituições de mediação e espectadores) que
permitem reconhecer os objetos artísticos da actualidade como tais.
Necessariamente que esta é uma tentativa em aberto, funcionando o livro mais
como um mapeamento de situações geradas pelos dispositivos da arte, do que como
um esboço de resposta.
2-Actualmente, tudo está a viver uma mudança vertiginosa: o que se passa na
arte contemporânea?
arte contemporânea?
R- A arte é um termómetro muito sensível em relação às mudanças do mundo. Claro
que as questões da globalização, de género, os processos migratórios e os
fenómenos sociais afetam e definem o campo no qual a arte é criada e fruída. No
entanto, parece-me que não devemos esperar da arte respostas aos problemas do
mundo, nem sequer a sua comunicação. A arte assenta sempre sobre processos
ficcionais que, necessariamente nascidos de situações específicas, são o
resultado de idiossincrasias dos autores, nas quais as circunstâncias
específicas do mundo se misturam indissociavelmente com as micro-histórias.
Provavelmente, o sintoma mais presente da incerteza do mundo transparece na
produção pelos artistas de micro-ficções, mais do que grandes narrativas.
Também a reinvenção dos processos criativos, cruzando indissociavelmente a
citação, a recorrência de temáticas da história da arte, a pequena história
pessoal, a documentalidade ficcionada e as referências a uma sensação global de
precariedade são tópicos inconformáveis da arte do presente. A complexidade
desta encruzilhada é exigente para o espectador, que necessita permanentemente
de se redefinir, mas esta é uma condição inescusável do mundo contemporâneo.
3-O digital está também a transformar a arte: em que
sentido(s)?
R – O digital afecta a arte em duas medidas: por um lado, ampliou de forma
exponencial o campo das imagens disponíveis, não só para os artistas, mas para
todos. A capacidade de produção imagética que tinha sido, durante muito tempo,
campo exclusivo da arte, está hoje disseminada por todos os que possuem um
smart phone. A especificidade das imagens artísticas é hoje, portanto, muito
mais difícil — e, por conseguinte, muito mais difícil de distinguir o artístico
do não-artístico. Por outro lado, a internet e as redes sociais
desestabilizaram o discurso crítico, minando os argumentos de autoridade da
crítica publicada — o que é interessante —, mas também minando a própria
possibilidade da produção judicativa — o que é muito mais complexo. Em suma, o
digital trouxe para a arte a necessidade desta se interrogar sistematicamente
sobre as suas condições de possibilidade de uma forma muito mais radical do que
aconteceu no passado. O que também tem o grande perigo de gerar uma arte que,
ou se exerce mimeticamente em relação à vulgarização das imagens, ou se centra
sobre a sua própria autofundamentação. Por outras palavras: sabemos que
qualquer imagem pode ser arte, mas a arte não pode ser uma imagem qualquer.
Entre estes dois “qualquer” vai-se construindo o campo da arte de hoje.
__________
Delfim Sardo
O Exercício Experimental da Liberdade
Orfeu Negro 21€
que as questões da globalização, de género, os processos migratórios e os
fenómenos sociais afetam e definem o campo no qual a arte é criada e fruída. No
entanto, parece-me que não devemos esperar da arte respostas aos problemas do
mundo, nem sequer a sua comunicação. A arte assenta sempre sobre processos
ficcionais que, necessariamente nascidos de situações específicas, são o
resultado de idiossincrasias dos autores, nas quais as circunstâncias
específicas do mundo se misturam indissociavelmente com as micro-histórias.
Provavelmente, o sintoma mais presente da incerteza do mundo transparece na
produção pelos artistas de micro-ficções, mais do que grandes narrativas.
Também a reinvenção dos processos criativos, cruzando indissociavelmente a
citação, a recorrência de temáticas da história da arte, a pequena história
pessoal, a documentalidade ficcionada e as referências a uma sensação global de
precariedade são tópicos inconformáveis da arte do presente. A complexidade
desta encruzilhada é exigente para o espectador, que necessita permanentemente
de se redefinir, mas esta é uma condição inescusável do mundo contemporâneo.
3-O digital está também a transformar a arte: em que
sentido(s)?
R – O digital afecta a arte em duas medidas: por um lado, ampliou de forma
exponencial o campo das imagens disponíveis, não só para os artistas, mas para
todos. A capacidade de produção imagética que tinha sido, durante muito tempo,
campo exclusivo da arte, está hoje disseminada por todos os que possuem um
smart phone. A especificidade das imagens artísticas é hoje, portanto, muito
mais difícil — e, por conseguinte, muito mais difícil de distinguir o artístico
do não-artístico. Por outro lado, a internet e as redes sociais
desestabilizaram o discurso crítico, minando os argumentos de autoridade da
crítica publicada — o que é interessante —, mas também minando a própria
possibilidade da produção judicativa — o que é muito mais complexo. Em suma, o
digital trouxe para a arte a necessidade desta se interrogar sistematicamente
sobre as suas condições de possibilidade de uma forma muito mais radical do que
aconteceu no passado. O que também tem o grande perigo de gerar uma arte que,
ou se exerce mimeticamente em relação à vulgarização das imagens, ou se centra
sobre a sua própria autofundamentação. Por outras palavras: sabemos que
qualquer imagem pode ser arte, mas a arte não pode ser uma imagem qualquer.
Entre estes dois “qualquer” vai-se construindo o campo da arte de hoje.
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Delfim Sardo
O Exercício Experimental da Liberdade
Orfeu Negro 21€