Da vivência autobiográfica à invenção
CRÓNICA
| agostinho sousa
Trata-se de um livro, publicado na Roménia em 1996, de difícil leitura ou como o próprio autor menciona: «Deste livro ilegível», que necessitou de um esforço inicial, como quem vislumbra uma montanha íngreme e, ao longo da sua escalada, vai sendo recompensado com o prazer de várias descobertas. Nele não há um fio condutor, uma história que ampare a leitura, mas uma multiplicidade de momentos que se entrecruzam, onde o tempo, o espaço e o(s) ser(es) se misturam oniricamente, como quando o autor fala consigo: «Chamei-te, então, no sonho: “Mircea!”, e soube que anos mais tarde irias ouvir.»
A memória, tratada como matéria densa ao longo da escrita, permite leituras paralelas, de regresso ao passado, mas «Não se descreve o passado escrevendo sobre coisas antigas, mas sim sobre a névoa entre mim e esse passado; o modo como o meu cérebro de agora reveste os meus cérebros passados, em cada vez mais pequenos crânios, de ossos e cartilagens e membranas; a tensão e o conflito entre o meu raciocínio actual, o de há um instante e o de há dez anos, na sua interacção, a fundição de um na imagética e na emoção do outro.»
Tem como pano de fundo uma Bucareste cinzenta e pobre, envolvida na desconfiança e fechada sobre si própria, do tempo de Ceaucescu, onde «tristes ciprestes procuravam o céu» num sinal de esperança. Um, entre muitos, dos sinais criados num mundo próprio, apoiado em descrições pormenorizadas, algo cinematográficas, com situações e personagens que lembram um misto dos filmes de Fellini e Kusturica: «O mundo também perdeu o juízo. É como se o meu caderno fosse uma mina de lápis índigo mergulhada num frasco de água: pouco a pouco, desfaz-se em irreais e diáfanos véus roxos e anis, dilui-se, fumo de cigarro, no vento frio deste Abril».
As mulheres têm uma forte presença neste universo narrativo, desde o útero materno às relações amorosas, enriquecido por um vocabulário, tantas vezes, excessivo, detalhado e muito científico, «num continuum realidade-alucinação-sonho». E há momentos em que a prosa se confunde com poesia:
-«Devíamos lembrar-nos com os testículos e amar com o cérebro. Mas isso não acontece. A memória está no cerne da mente e o amor entre as coxas, como se a alma, perversa, se tivesse ajeitado ao contrário, no seu caixão de matéria orgânica.»
Trata-se de um livro exigente, desconcertante e inclassificável que, tantas vezes, desnorteia a leitura «porque tudo se mantém no lugar onde não se distingue o sonho da recordação, pois essas grandes zonas do mundo ainda não estavam, naqueles tempos, separadas uma da outra. Viver o insólito, emocionar-se, ficar pasmado face a uma imagem fantástica, significa sempre a mesma coisa: regressar, voltar, descer ao âmago arcaico da mente, olhar com os olhos de uma larva humana, pensar algo que não é pensamento, com um cérebro que ainda não é cérebro e que funde, num miolo de prazer dilacerante, aquilo que nós, ao crescer, separamos.»
Primeiro livro de uma trilogia, onde a vivência autobiográfica do autor se mistura à invenção, que nos leva a aguardar esperançados a tradução do(s) próximo(s) volume(s), porque este, desde já, merece ser relido. Comparo-o àqueles edifícios em que iremos descobrir detalhes luminosos que nos escaparam da primeira visita. Espinho, 25/06/2022
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Mircea Cartarescu
Ofuscante – A asa esquerda
E-Primatur
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