Como a Ibéria se dava com Inglaterra

Neste mundo cada vez mais focado na economia & negócios, alta finança e muita especulação, não faltam vozes a defender que só os cursos com interesse para as empresas deviam existir (ou pelo menos no ensino público), porque tudo o resto são distracções de intelectuais (um termo pejorativo, entenda-se). Incluem-se nesta condição, como facilmente se percebe, disciplinas como Filosofia ou História ou a Literatura, que segundo essa linha de pensamento não trazem mais-valias – ou pelo menos não são convertidas em lucro nem cotadas em bolsa.
Vingasse essa tese na sua plenitude (muito se caminha já nessa direcção) e não teríamos o prazer de ler “A Inglaterra e a Península Ibérica na Idade Média (séc. XII-XV) – Intercâmbios Culturais, Literários e Políticos”, da académica María Bullón Fernández, que faz luz sobre um intercâmbio muito pouco estudado e menos ainda divulgado.
Trata-se de um conjunto de ensaios, nove no total, de vários académicos sobre as relações entre Inglaterra e os reinos de Portugal, Galiza, Castela e Catalunha durante a Idade Média. Ao contrário do que se possa pensar, foi uma época profícua no intercâmbio de ideias e culturas, trocas comerciais, deslocações religiosas, comunhões sagradas e régias.
Como refere María Bullón Fernández, «esta colecção de ensaios é interdisciplinar. Procura analisar as relações entre a Inglaterra e a Península Ibérica através das ópticas da história, literatura e história de arte. É igualmente transnacional em dois sentidos. Primeiro, no contexto do discurso sobre nações durante o século XII até ao século XV, ao abordar os relacionamentos entre nações. Em segundo lugar, por colocar em diálogo académicos contemporâneos da Inglaterra, dos Estados Unidos e da Península Ibérica» (pág. 16).
Do conjunto de ensaios, três focam Portugal e um quarto, que abre a obra – “A Inglaterra e a Península Ibérica medievais: Uma relação cavaleiresca”, de Jennifer Goodman Wollock – detém-se na Ibéria, ou mais concretamente na circulação de poemas cavaleirescos entre os reinos ibéricos e Inglaterra, bem como no intercâmbio entre membros das famílias reais.
Os outros três ensaios abordam as relações comerciais entre Portugal e a Inglaterra, uma aliança por via matrimonial e uma lenda.
Em “O comércio Anglo-Português durante o reinado de João I de Portugal (1385-1433)”, Jennifer C. Geouge foca a intensificação do comércio, por força da aliança entre ambos os países, ressaltando os problemas encontrados pelos mercadores e as vicissitudes das relações comerciais, o que leva a apelidá-las de “verdadeiramente intrigantes e turbulentas” (pág. 125).
Extremamente interessante é o artigo de Joyce Coleman, “Filipa de Lencaster, Rainha de Portugal – e mecenas das traduções de Gower?”, sobre a rainha Filipa de Lencastre, a nobre inglesa que casou com D. João I como «preâmbulo a uma invasão anglo-portuguesa que teria por objectivo colocar o seu pai no trono de Castela» (pág. 138) e cuja vida foi muito além do facto de ter sido a mãe da “Ínclita Geração”, como lhe chamou Camões.
«Este ensaio é em parte história literária e em parte novela. Tem como protagonista uma forte personagem feminina, que atravessa uma infância rica mas caótica e uma série de arranjos falhados para desposar um homem por quem acaba por se apaixonar, de quem tem uma famosa geração de filhos e, incidentalmente, proporciona a tradução e migração textual em não menos do que quatro países e cinco línguas» (pág. 137), escreve Coleman logo no início do ensaio, a despertar o apetite para a leitura – que não defraudará quem se aventurar.
Por fim, o estudo de Amélia P. Hutchinson – “’Os Doze de Inglaterra’: Um romance sobre as relações Anglo-Portuguesas na Baixa idade Média?” – analisa as relações entre os dois países durante um episódio que deu origem à lenda dos “Doze de Inglaterra”, que cristalizam o ideal de glória e reconhecimento internacional para Portugal pelo valor dos seus cavaleiros.
“A Inglaterra e a Península Ibérica…” merece sem dúvida uma leitura atenta. Sorte a nossa, que ainda existem historiadores dispostos a revelarem-nos o passado – mesmo que isso não seja cotado em bolsa.
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María Bullón Fernández
A Inglaterra e a Península Ibérica na Idade Média (séc. XII-XV) – Intercâmbios Culturais, Literários e Políticos
Publicações Europa-América, 23,84 €