Chico Buarque: Tanta história, tanto charme, tanta solidão
CRÓNICA
|Rui Miguel Rocha
Como um admirador do Chico músico, demorei este tempo todo a ganhar coragem para ler um romance dele. Tinha medo que me defraudasse, embora deva assumir que seria quase impossível isso acontecer. E não aconteceu. Aliás, o primeiro capítulo é tão bonito que não consegui largar mais o livro. Tanta história, tanto charme, mas ao mesmo tempo tanta solidão e desamparo e tristeza na decadência do corpo e da mente. A verdade é que todos nos vemos com um fim semelhante, embora possa acontecer a abençoada morte súbita que nos poupe a termos de viver os nossos últimos dias na jaula de sermos.
Esta é a história de Eulálio Assumpção, assim mesmo com p mudo, que ele conta de um lar/hospital, já com cem anos e a memória gasta ou inclusiva pois mistura o Brasil dos pais e avós com o Brasil dele e dos filhos e bisneto, “e qualquer coisa que eu recorde agora, vai doer, a memória é uma vasta ferida”. Um monólogo para quem estiver ao lado ouvir, neste caso nós que lemos a técnica invejável do Chico, com a queda de uma família que vai ficando sem os imóveis, sem as roupas e sem o estatuto social de outrora, quando eram confidentes do Marquês de Pombal, “naquele tempo a gente era veloz e o tempo se arrastava”. Um domínio permanente dos saltos no tempo “é esquisito ter lembranças de coisas que ainda não aconteceram, acabo de lembrar que Matilde vai sumir para sempre” e no espaço sem que a narrativa seja afectada, nem o seu fio condutor, nem as mudanças de humor entre sorrisos e lágrimas. “Quando a senhora me acordou, por coincidência eu acabava de acordar no casarão de Botafogo.”
Mas é também a história de uma mulher desaparecida há muitos anos, uma mulher que tinha todo o Brasil dentro, Matilde. “Era como se a cada passo eu me rasgasse um pouco, porque minha pele tinha ficado presa naquela mulher.”
Um ambiente onírico até ao fim, e se Chico pensava que não, há sempre alguém para ouvir, “as pessoas não se dão ao trabalho de escutar um velho, e é por isso que há tantos velhos embatucados por aí, o olhar perdido, numa espécie de país estrangeiro.” Eu ouvi. Saravá, Chico!
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Chico Buarque
Leite Derramado
Companhia das Letras 14,95