Catarina Gomes: o que os loucos deixaram para trás

1-Qual a ideia que esteve na origem deste seu livro «Coisas de Loucos. O que Eles Deixaram no Manicómio»?
R- Como jornalista sempre me interessou escrever sobre saúde mental. Ao longo dos anos fui fazendo reportagens nos hospitais psiquiátricos Júlio de Matos e também no Miguel Bombarda, em Lisboa, que foi o primeiro «manicómio» a abrir em Portugal e também foi o primeiro a fechar, em 2011. Nesse ano, eu quis acompanhar a saída dos seus últimos 24 habitantes, homens e mulheres que aí viviam há uma média de 40 anos. Era o fim de uma era.  Depois dessa última reportagem, fiquei com vontade de escrever sobre a história mais remota do hospital, sobre as pessoas que por ali tinham passado, milhares de homens e mulheres, cujas «entradas» e «saídas» (que muitas vezes coincidem com as suas mortes) ficaram registados nuns enormes e carcomidos volumes chamados «Livros de Admissões». O hospital estava desactivado, mas o «arquivo morto» permanecia no sótão. Foi lá que tive de o consultar. Foi por puro acaso que, um dia, reparei numa caixa de cartão empoeirada que estava no chão. O que encontrei lá dentro nunca mais me abandonou. Eram, por exemplo,  um par de óculos, uma caixa de ponteiros de relógios, um bilhete de identidade da década de 1920, fotografias de família… Os Livros de Admissões eram, ao lado daquela caixa, pobres. Ali estavam bocados de vida, peças de vários puzzles que durante muitos anos eu tentei montar. O livro nasceu no dia em que abri a caixa.

2-No âmbito da sua investigação, o que mais a surpreendeu no que diz respeito à forma como a sociedade portuguesa de então se relacionava com a doença mental?
R- Surpreendeu-me o facto de  tudo ser tão recente. São na sua maioria pessoas do século XX, muitas morreram já na segunda metade e, no entanto, tudo aquilo por que passaram, o internamento para a vida, a leucotomia (mais conhecida por lobotomia) nalguns casos, os electrochoques usados de forma generalizada como tratamento, o facto de, por exemplo, a homossexualidade e a epilepsia serem ainda tidas como doenças psiquiátricas, parece ser de um passado muito mais remoto do que de facto foi. Ao mesmo tempo, quando olhamos para este passado dos nossos dias, temos tendência a ver estes médicos e também estas famílias como maus da fita, quando, em muitos casos, ao internar os seus familiares em manicómios, achavam que estavam a fazer o melhor para eles, a protegê-los de si mesmos, porque não havia outras soluções. 

3-Os objectos encontrados são a porta de entrada para a história pessoal e familiar: como metodologia, revela-se um processo muito rico. Como jornalista de investigação, gostava de poder alargar esta experiência a outros casos e a outros contextos?
R- Sem pensar muito nisso acho que sempre o fiz. Em qualquer história de vida que se queira contar, os objectos que rodeiam ou rodearam as pessoas (no caso de quem já morreu) são de uma enorme riqueza biográfica. Em reportagem, quando a pessoa sobre quem queremos escrever nos convida para a sua casa se calhar metade do trabalho fica feito. Abre-nos a porta do seu mundo, ali está a sua história, o que acumulou, o que lhe foi oferecido, o que escolhe mostrar aos outros de si. E os objectos são em si mesmos perguntas: Onde tirou esta foto? Esta é a sua família?  No caso deste livro, as perguntas fizeram-se silenciosamente dentro de mim, porque os donos dos pertences que encontrei dentro da caixa já tinham morrido: Que vidas tiveram vocês? O que vos adoeceu? Tiveram vida fora do hospital? Alguém vos amou? Foram perguntas que me acompanharam durante anos e às quais tentei, de forma ao mesmo objectiva e pessoal, responder.
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Catarina Gomes
Coisas de Loucos. O que Eles Deixaram no Manicómio
Tinta-da-China  17,90€

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