Carlos Maria Antunes: “A coragem para colocarmos as nossas margens no centro da existência”
1-Qual a ideia que esteve na origem deste seu novo livro Oh noite que guiaste!?
R-Vivemos num tempo em que assistimos, nomeadamente no espaço público, a uma crescente polarização e fragmentação. A ideia de comunidade solidária está em risco ou, pelo menos, aparece secundarizada. Neste livro, a noite é uma metáfora da vulnerabilidade da vida, realidade nem sempre fácil de assumir, mas essencial para a nossa humanização. Tão essencial, que pode guiar-nos na aproximação uns aos outros, criando relações de fraternidade. Como humanidade, todos temos a perder com a fragmentação e todos ganhamos com o encontro. Daí o subtítulo do livro: da inospitalidade ao encontro.
2-Escreve que temos de “transver o mundo” (p. 30): o que significa isso nos dias de hoje?
R-“É preciso transver o mundo” é um verso do poeta Manoel de Barros. Entendo transver como ver para além de… Trata-se de cultivar um olhar em profundidade, que descobre novas possibilidades inscritas na realidade, mas nem sempre visíveis num primeiro olhar. A realidade é complexa e multifacetada. Não podemos agarrar-nos ao discurso da fragmentação como se caracterizasse a única face do mundo, pois hoje também existem muitos movimentos de solidariedade com os mais pobres e com outros grupos fragilizados, assistimos um compromisso crescente com as questões ambientais, há uma maior consciência dos direitos de alguns grupos minoritários, etc… O poeta diz que “a imaginação transvê”, e a capacidade de imaginação está intimamente unida ao espaço que habitamos dentro de nós. É preciso desenterrar muita vida escondida dentro de nós, capaz de renovar o nosso olhar sobre o mundo. “Transver o mundo” é um convite cheio de esperança, no sentido de tornarmos as nossas sociedades mais inclusivas. A questão da espiritualidade é, aqui, central.
3-“Há muita gente que vive na margem por variadíssimas razões” (p. 65). Trazer muitas dessas pessoas para o centro da vida e da sociedade, o principal desafio que hoje temos em mãos?
R-Uma sociedade humanizada, onde todos efetivamente tenham lugar, fraterna, não pode acontecer se não olharmos o mundo a partir das periferias, as sociais, obviamente, mas não só. Há “margens” na vida de todas as pessoas, lugares inóspitos dentro de nós, que muitas das vezes preferimos ocultar ou fazer de conta de que não existem. A coragem para colocarmos as nossas margens no centro da existência será um fator decisivo para a humanização da vida individual e coletiva. Como sociedade, é urgente e fundamental trazermos para o centro da nossa reflexão e discussão as questões da pobreza económica (cujas soluções adiamos sistematicamente), como também, e não menos importante, o fenómeno da doença mental, que hoje se manifesta de forma crescente e alarmante em todos os grupos etários, com especial incidência nos mais novos. São lugares de dor, entre outros, tendencialmente marginalizados, que dizem respeito a todos nós, e que todos ganhamos se os trouxermos para o centro da nossa vida coletiva.
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Carlos Maria Antunes
Oh noite que guiaste!
Paulinas 12€