Carlos Campaniço: “Consegue passar do fantástico para o realismo com uma mestria extraordinária”

1-No ano do centenário de José Saramago, qual o principal legado do escritor?
R-O legado de Saramago é multiplo e incomensurável. Para além de ter dado luz à Literatura de Língua Portuguesa, de ter valorizado concomitantemente a nossa Língua e  Literatura, Saramago deixa uma obra imensa e valiosíssima. Sobretudo por dois factores inquestionáveis: a sua qualidade libertária e o seu pensamento corajoso. Quanto à obra, ela é traduzida em quase todo o mundo, sendo um dos Prémio Nobel mais conhecidos. A par de Pessoa, é a grande referência lusófona desta arte. Trouxe e impôs uma voz literária inovadora, sarcástica e poética, retórica e filosófica, por exemplo. É comum Saramago convocar o leitor, chamá-lo a tomar partido, muitas vezes provocando-o, acicatando-o, para que daqui nasça a reflexão necessária. A obra de Saramago só está completa com este complemento de consciência do leitor. E apesar de tratar dos grandes temas da humanidade a sua obra é uma lufada de originalidade, levando-nos a olhar, de “forma nova”, para a realidade instituída. É por isso que o seu pensamento é inquietante. Ele quebrou barreiras, provocou o sagrado, questionou-o, trouxe-o para uma dimensão humana e não tanto para o instituído plano sobrenatural. Esta dialéctica com o sagrado deu ao Homem um estatuto de dignidade que parecia ter desaparecido desde os neo-realistas. Mas foi mais além do que estes, também decifrou os pecados do ser humano independentemente dos quaisquer catalogações. É uma evidência que estamos perante uma literatura de denúncia consciente e que se quer modificadora. Ademais, consegue passar do fantástico para o realismo com uma mestria extraordinária. Por vezes, envolve-os. Envolve-nos também numa cadência de pensamentos e lógicas, que é como abrir portas novas a cada página. O pensamento de Saramago é tão rico que uma das suas mestrias é torná-lo acessível ao leitor-comum. Por fim creio que a sua forma corajosa de escrever libertou muitos romancista, permitindo-lhes, pelo exemplo, de escreverem sem medo de possuírem pensamento crítico.

2-Qual é o seu livro preferido escrito pelo nosso Nobel?
R- Apesar de gostar de todos os seus livros (sim, é mesmo verdade!), o meu preferido é Levantado do Chão.

3-Razões dessa escolha?
R- A razão é simples, passa-se no Alentejo e projecta nele todas as injustiça daquele época. Levantado do Chão é uma radiografia, uma pintura, uma postal, fiel daqueles tempos. É, também, escrito num tom quase épico, fazendo tributo a uma região e a um povo que foi esmagado pelos poderosos e nunca se viu recompensado por tal. Saramago não deixou esquecer o que foi a servidão e a fome de muitos seres humanos. Continuada e aceite como natural. Li-o quando era adolescente e estremeci de revolta. Estava a fazer-me romancista também, lendo, ainda sem saber que havia de editar um dia. É certo que este livro me marcou muito e para sempre. Levantado do Chão foi um livro essencial para o modo como vejo a história daquele tempo.
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Carlos Campaniço, Escritor