Bruno Schultz é um escritor muito sensorial
CRÓNICA
|agostinho sousa
Trata-se de um livro difícil. Ia a meio da sua leitura e estava algo desorientado, mas a persistência trouxe frutos: Bruno Schultz é um escritor muito sensorial que trabalha com o que vê, mas a sua forma de ver tem uma imaginação que recria em muito e ultrapassa a realidade. Ele próprio o afirma num dos seus contos: Viver à custa de metáforas é uma das particularidades da minha existência; deixo-me levar facilmente pela primeira metáfora que aparece.
Cheguei a este escritor através de uma das crónicas de Histórias de Livros Perdidos, de Giorgio Van Straten, onde é retratada a forma brutal como ele foi assassinado por um oficial nazi das SS, apenas para irritar outro colega para quem Schultz estava a pintar um fresco.
No fim desta obra surgem textos de dois autores que deveriam estar posicionados como prefácios, pois ajudam a enquadrar este escritor no tempo e na sua forma de abordagem, tanto na escrita como nos desenhos que acompanham o livro. A partir dessas explicações tem-se conhecimento da vida pobre e atribulada deste homem, judeu, escritor, pintor e desenhador, marcado por uma série de infortúnios familiares que culminam com um tiro na nuca, aos cinquenta anos, precisamente na véspera do dia em que estava prevista a sua evasão, cuidadosamente planeada pelos amigos de Varsóvia.
Os contos são surrealistas, muito imaginativos, por vezes delirantes, com um vocabulário exuberante, quase verborreico (como afirma uma das apresentações), contemporâneo das vanguardas do seu tempo.
A sua escrita leva o leitor a ver com outros olhos: Encostei os meus olhos numa fenda na cerca, e o que vi só podia ser ilusão. No ar primaveril, rarefeito pelo calor, surgem por vezes miragens de objetos distantes, espelhados através de milhas inteiras de ar vibrante. Mesmo assim, a minha cabeça explode com os pensamentos mais contraditórios.
O modo como escreve, as temáticas e o tipo de personagens (pai, elementos da natureza, personagens históricas ou um livro) que vão surgindo ao longo dos contos, bem como as suas vivências, antecedem semelhanças ao tipo de abordagens da escrita de Maria Gabriela Llansol.
É um livro diferente, de escrita prodigiosa, densa, que merece uma leitura muito mais atenta e concentrada para trazer frutos.
Durante as narrativas há quebras, aparentemente desconexas, com momentos de absoluta poesia. Ele próprio o afirma, num texto final sobre A Mitificação da Realidade: A poesia são curto-circuitos de sentido que se produzem entre as palavras, uma repentina geminação de mitos ancestrais.
O excelente conto que dá nome ao livro é prova desse desacerto, desse jogo entre tempo e espaço, em que um filho, recém-orfão, vai ver o seu pai a um sanatório, onde o tempo pode ser retrocedido, permitindo o encontro entre vivos e mortos, e, com isso, alterar relacionamentos. Em algumas narrativas há momentos ao nível do melhor Kafka.
O autor começa, logo no primeiro conto O Livro, por desafiar-nos: Porém o leitor, o leitor verdadeiro com o qual este romance conta, entenderá mesmo assim, quando eu o olhar bem no fundo dos olhos, iluminando-o com esse brilho. Nesse olhar breve e penetrante, nesse furtivo aperto de mão, ele o captará, retomará, reconhecerá – e fechará os olhos no êxtase dessa recepção profunda. Pois será que debaixo da mesa que nos separa não estamos todos secretamente de mãos dadas?
O desafio está traçado: este livro merece ser relido!
Espinho, 25/04/2022
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Bruno Schultz
Sanatório sob o signo da clepsidra
Edições do Tédio 18,00€