Beja Santos: “A sociedade de consumo triunfou”

1-Qual a ideia que esteve na origem deste seu livro Sociedade de Consumo e Consumidores em Portugal?
R-Desvanecido pelo convite feito pelo Dr. António Araújo, tendo em conta o facto insólito de que o último livro publicado em Portugal sobre a sociedade de consumo e a política dos consumidores tinha sido escrito por mim e publicado em 2012, à guisa de recordatória para as novas gerações (estava a reformar-me, pesavam 50 anos de serviço público e não estava a custar nada de assistir ao definhamento da cidadania no consumo, entendi que estava confrontado com um belo desafio, meter o Rossio na Betesga, fazer a maratona da sequência de acontecimentos, por via diacrónica, da eclosão da sociedade de consumo e como esta se implantou no termo da Segunda Guerra Mundial, no chamado Mundo Ocidental, e atraindo todos os outros Estados para o sonho do bem-estar. Esquematizei um apontamento sobre a passagem de um tempo agrícola a um tempo industrial e deste ao encadeado de fenómenos que desaguaram no consumo de massas: a energia barata, a linha de montagem, a divisão do trabalho, a revolução da química, as exigências do cosmopolitismo, à extensão fulgurante das classes médias e intermédias, a expansão da comunicação, as indústrias do entretenimento, enfim, a passagem da penúria a quadros de abundância. E as suas consequências no sistema ideológico e político, as alterações socioculturais: a diluição do estatuto da dona de casa, o aparecimento da família nuclear, a democratização do ensino, a gradual acessibilidade aos sistemas de saúde, e o campo de batalha dos bens e serviços, que foi mais devastadora que a Guerra Fria: no Ocidente, a tónica era dada pela liberdade de escolha, a casa própria, o automóvel, as férias pagas, o Estado Social; na esfera soviética, a apologia da satisfação das necessidades básicas, a reverência às decisões dos líderes que davam emprego a todos, que queriam uma casa para todos, saúde e educação para todos, mesmo que à custa de uma nivelação que se veio a revelar fatal. A sociedade de consumo triunfou, ninguém quer que os outros decidam pelos próprios a composição da ração alimentar, o que devem ou não comprar, todos almejam um poder de compra intocável. Como é evidente, impunha-se traçar uma narrativa para uma sociedade de consumo à portuguesa, com pelo menos duas décadas de distância do tal Mundo Ccidental, o sonho de pôr o consumidor no texto constitucional e com a adesão às comunidades económicas europeias ter-se pensado que chegara a hora de impor a vontade do consumidor numa infinitude de medidas de política. As coisas não aconteceram assim e procura-se explicar como sub-repticiamente a política dos consumidores veio a ser substituída por uma política de salvaguarda dos direitos dos consumidores. E o que temos à vista não é famoso.

2-Quais as tendências mais evidentes da evolução da sociedade de consumo?
R-Em meados da década de 1980, apareceu uma profusão de organizações que se reclamavam defensoras dos consumidores, desde as telecomunicações às cooperativas de consumo, das associações de origem sindical às chamadas associações de consumidores da classe média, apareceram pelo menos duas dúzias de organizações. O embate com a realidade foi muito duro: promover os interesses dos consumidores exige conhecimentos técnicos, discernimento cívico-político, densos entrosamentos no campo da cidadania. O tempo se encarregou de levar ao desaparecimento a generalidade dessas organizações. E mesmo as que estão de pé não se identificam com o futuro, a sustentabilidade tornou-se a matriz do funcionamento do mercado; e a sustentabilidade reclama uma intervenção exigente em múltiplos domínios, grande parte deles próximos das preocupações ambientalistas. Costumo dizer que os ambientalistas têm o seu olhar orientado desde a natureza até à porta da fábrica e os consumidores reservam o seu interesse ao que sai da fábrica e aparece no mercado. As instituições comunitárias, e hoje a União Europeia, são severamente responsáveis para que durante décadas tenham apoiado estes tipos de intervenção. Falando só da política dos consumidores, desde o grande objetivo da realização do mercado interno europeu (1992) o enfoque da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu é que o consumidor seja um apurado agente no funcionamento do mercado. Não desvalorizo de modo algum os importantíssimos benefícios da política europeia para consumidores, basta pensar nas medidas relacionadas com a segurança do bens de consumo, os direitos que gozamos no transporte aéreo, o roaming, no quadro dos direitos; entretanto,e agora acicatado pela agressão russa à Ucrânia, e com a transfiguração do modelo energético e comercial no continente europeu, o consumidor é induzido a intervir na pegada ecológica, nas alternativas energéticas, na digitalização, e muito mais. Repita-se que a generalidade das organizações de consumidores não têm competência técnica para este tipo de intervenção. Não vejo qualquer discurso favorável à preparação dessas competências, a não ser que as instituições europeias ambicionem substituir a intervenção cidadã pela administração pública. Se assim for, qual será o futuro da cidadania no consumo e da democracia participativa?

3-Como são os consumidores portugueses de hoje?
R-São rezingões quanto ao poder de compra, adotam os mesmos procedimento camaleónicos que noutros Estados, procuram o low-cost indiferentes a quem ali trabalha tem condições deploráveis de remuneração e segurança; delegam no Estado a operacionalização da defesa do consumidor e confiam que os jornalistas nos bombardeiem com as denúncias das tramóias; as instituições do Estado andam impantes de satisfação: a ASAE anda de lupa em riste nos supermercados, a ANACOM quer reduzir o tempo de fidelização às operadoras de telecomunicações, não sabemos bem quem nos defende da multiplicidade de preços de água nas autarquias… Não tomem este comentário como altamente pessimista. Aprendi por experiência própria que eram apreciados os meus programas de televisão por denunciar as broncas, quem se lembrou de defender o consumidor foram alguns partidos políticos por terem na sua composição  pessoas de espírito moderno, não foi uma exigência popular que levou à institucionalização da defesa do consumidor em Portugal. E termino por onde comecei, tem que haver alguma razão muito especial para não se escrever livros sobre a política dos consumidores nem sobre a sociedade de consumo. A quem competirá tal obrigação? Talvez o meu livro ajude a rasgar o véu de tanto mistério…
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Mário Beja Santos
Sociedade de Consumo e Consumidores em Portugal
Fundação Francisco Manuel dos Santos  5,00€

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Mário Beja Santos na Novos Livros | Entrevista