Aurora Venturini: Não há histórias de amor neste romance

CRÓNICA
| Célia Gomes

Não há histórias de amor neste romance, talvez haja de desencanto e desapego. Também não há heróis ou heroínas evidentes. Aliás, heróis era impossível haver, pois neste livro são as mulheres as protagonistas, as que remam o barco, as que sofrem, as deformadas, as pecadoras (e o que é o pecado?) as que guerrilham (será que guerrilham ou apenas sobrevivem?). A mãe rígida e saudosista de um marido que fugiu, a tia Néné, desmedida, mas que «brinda à paz» e à honra do lar e que morre ao bater com a nuca no chão, ao  escorregar  numa flor cujo nome é alegria-do-lar. Irónico? A tia Ingrazia, apagada e comedida. A irmã Betina, deficiente mental, «erro da natureza.. feia, horrível, cabeça de búfalo, cheiro de trapo húmido. Coitada…», a prima Carina, que engravida do vizinho, aborta e morre de septicemia. A prima Petra, irmã de Carina, liliputiana perversa e com manhã do tamanho de um gigante. E Yuna, a narradora, a resistente, gh.desgraçada plêiade, que tinha que triunfar sobre toda a barbaridade de excrementos e deformidades». Todas elas às cegas, pois segundo Saramago «a cegueira também é isso, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança». Todas não.  Yuna, vê bem, pois vive no mundo da pintura, milagre poderoso, que transformou a sua rastejante existência em voo «eu queria sentir-me recém-chegada ao mundo como se nascida de um grande ovo, quero ser uma ave diferente, uma andorinha que  vai e vai e nunca se detém». E uma ave é esperança, primavera e futuro. Quanto aos homens presentes na história, ou são  bárbaros e vis, ou  insignificantes  e ignorantes. Deparamo-nos com o bárbaro vizinho que viola Carina, a engravida e acaba «deitado no chão do telheiro das batatas, das hortaliças (…) numa poça de sangue», assassinado friamente por Petra. O vil professor, que é musa e mestre de Yuna, que lhe dá um «beijo de cor azul» (a que saberá um  beijo desta cor? A mar ?!) mas cuja aparência santa abriga  um depravado capaz de abusar e de engravidar a indefesa Betina. Os insignificantes Sancho- que não consumou o casamento de Néné-, Danielito, casado coma tia Ingrazia, «com falta de personalidade e que deixava a casa à deriva», Abolorio, o figurante que aparece para ser padrinho, para os jantares, e Carmelo, o senhorio narcisista que se deixa levar pelas falas mansas de Petra ficando noivo desta, que aproveita para se aposentar «da profissão mais antiga de mundo».  O único homem que poderia, (caso Venturini e Yuna tivessem querido – mas não quiseram) fugir desta insignificância seria o rapaz pelo qual  a protagonista  parece apaixonar-se «há um rapaz não muito bem vestido que olha para mim e que anda de bicicleta (…) e quando me fita os seus olhos brilham e são de cor de mel». Todas precisamos de olhos que nos fitem e que transbordem mel,  Yuna!
´Esta obra, excêntrica, grotesca, chama-se «as primas» (talvez homenageando as confidentes primas, mas poderia chamar-se «à mesa», pois a maioria dos grandes acontecimentos  são passados à mesa. Desde os almoços quotidianos em que Yuna tentava meter o garfo com  comida no olho ou no nariz da «nojenta irmã», passando pelo aniversário de Betina, em que o  caixote com garrafas de champanhe tocou no bolo de três andares, que se despenhou sobre a toalha. À mesa, acontece o noivado forçado de Betina, os lanches entre primas, com conversas inconfessáveis. Quiçá, foi à mesa que a inocente Yuna interpelou a experiente Petra sobre o termo enigmático que tantas vezes ouvia de «Sessorial». Enigma que não vou revelar, mas que confesso me fez rir sonoramente e ainda me faz. E por fim,  os jantares. O jantar com o senhorio, em que Petra, hirsuta besta com vestes de cândido anjo, lhe lança as garras predadoras. Tudo descrito pela genial e geniosa Venturini, com ironia, graça, recorrendo com abundância a hipérboles para descrever esta singular família em que todos andam a esmo.  Não sei porquê imagino-a a descrever as personagens, as sucessivas mortes e os repastos, rindo muito, muito, ao som do bolero de Ravel ou da Traviata de Verdi.  Venturini que salvou, com mestria, desta demência,  Yuna, a talentosa artista que descobriu na pintura o refúgio , «comprei uma tela gigante para pintar o meu mundo»,   a cor «fui invadida por inspirações enormes e sonhava com acontecimentos vividos transformando-os em figuras cada vez mais coloridas» e  a superação, «ninguém se apercebeu dos meus sofrimentos talvez ultrapassados pela qualidade dos meus quadros que ano após ano valiam mais» e o crescimento , «Pintei muito e chorei, reparei nas grossas bátegas contra os vidros e cheguei à conclusão de que além das grandes pinturas que fecundam a natureza também outras de idêntica e agradável queda fecundavam as barrigas para os nascimentos».  Nietzche defendia que «sem música a vida seria um erro». Para Yuna, erro maior, seria a vida sem pintura. «Eu só vivia para me sentar e pintar e o mundo à minha volta desaparecia deixando-me numa bonita ilha de tonalidades». E a maturidade do livro e da nossa pintora, na sua arte e na sua vida atinge o apogeu, quando consegue «por pontos finais» nas frases que escreve,  ponto  final na harpia inveja da prima Petra e ponto final na degradada e inculta família com a qual nunca se identificou. «Sentia-me acabada de nascer, equilibrar-me, expor. Apaguei. Apaguei . Apaguei tudo». Apagou a memória  e pintou tudo, o «aborto»,  «pégaso» , «salgueiros no inverno», o «desenraizamento» e muitos outros. E eu fiquei a imaginar as tonalidades e o conteúdo  destas telas ouvindo o   «besame… besame mucho», de Ortiz Tirado, que Yuna apreciava  e que talvez lhe matizasse a imaginação, a esperança e a fantasia com miríade de cores. E que seria da vida sem cor, esperança e fantasia?
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Aurora Venturini
As Primas
Alfaguara  18,45€

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