Assim se vê a força do PCP (e a têmpera de Cunhal)

As memórias revelam-se cada vez mais portas abertas sobre a história – de instituições, épocas, países, ou tão-somente das pessoas que a protagonizaram. Mesmo quando os memorialistas tentam meter a unha no curso dos acontecimentos, não é a falsificação que daí necessariamente resulta. Pelo contrário, ao historiógrafo pela certa não escapará a tentativa de estropiar a verdade, e aí pode começar um outro caminho de investigação: “O que terá levado o autor a querer dar a volta a factos conhecidos”?
Tudo isto a propósito de um livro que muito ajudará a entender o tempo e o modo de um grande partido português, nem sempre compreendido nas suas directivas e opções, clareza de opiniões e contradições, linha ideológica aqui e ali embrulhada na força das próprias linhas da História. O autor foi protagonista de muitos dos acontecimentos que marcaram a vida do Partido Comunista Português desde os tempos da clandestinidade, membro que foi da sua direcção a partir de 1967.
Natural, pois, que tenha conhecido Álvaro Cunhal de modo muito próximo, o que lhe concedeu os elementos necessários a tecer um retrato que vai muito para além da imagem que o cidadão normal poderá ter construído e mesmo muitos outros do imbróglio político. Não só, claro, acompanhou de muito perto as opções político-ideológicas de cada momento, como o líder (nem sempre incontestado, afinal…) apontava e abria caminhos na luta contra o salazarismo, durante décadas, contra o marcelismo, por fim. Ele também foi solicitado, de uma forma ou de outra, a observar, a intervir, a sugerir.
Dir-se-á que este relato feito de dentro da vida do partido é demonstrativo de como a organização foi tendo uma leitura correcta de cada momento da vida portuguesa, quer ainda com grande parte do aparelho na clandestinidade, quer depois da instauração da democracia em Portugal. Não será tanto assim, como ressalta do relato de Carlos Brito quanto à recepção do seu relato (ele estava então encarregado da ligação com os militares) dos acontecimentos do 16 de Março de 1974, e depois com a eclosão do 25 de Abril, e da leitura que a cúpula do PCP fazia dos acontecimentos.
O relato do acompanhamento (e tentativa de influenciar) da preparação do 25 de Abril é um testemunho importante da própria génese e construção do MFA, com o reconhecimento por Carlos Brito de que a influência exercida se limitou ao “campo restrito da elaboração de posições programáticas e não mais, uma vez que, como se sabe, o MFA caracterizou-se sempre pela sua natureza genuinamente militar e de independência em relação às forças políticas”.
É no domínio deste acompanhamento da “preparação do levantamento militar” que é revelada a posição surpreendente da direcção do partido no exílio: “Com grande espanto meu, a resposta que veio de Paris era não só de grande cepticismo em relação à informação como cheia de recomendações para que estivéssemos alerta com tendências aventureiristas e putchistas dos militares que podiam prejudicar a ascensão da luta popular e democrática”.
Aqui, e a propósito, Carlos Brito traça uma avaliação negativa da personalidade que resolveu biografar, porque “as respostas de Cunhal, que outros camaradas subscreviam, vinham sempre marcadas por um sentencioso cepticismo, com os velhos preconceitos e receios do putschismo”. Retorcia-se, claro, porque, como recorda, “o que estava a acontecer com as forças armadas correspondia ao que tinha sido previsto e teorizado pelo partido (pessoalmente por ele, Cunhal)”.
Não foi caso único, esta contradição, este tipo de choques que é assinalado em diversas situações e conjunturas. De outro modo, aí fica, também, o registo do desaire eleitoral do PCP nas primeiras eleições realizadas depois do 25 de Abril (para a Assembleia Constituinte), quando na sede do partido os resultados caíam e Cunhal “não sossegava”. “Deslocava-se agitado e mudo entre os postos de recolha, esperando uma milagrosa reviravolta”. É claro que o líder aparece aqui censurado por não ter previsto a situação, numa campanha desadequada, como Brito exemplifica ao acentuar intervenções de Cunhal em comícios: “Os discursos do secretário-geral que serviam de matriz à campanha eram demasiado ideológicos, como alguns de nós na direcção fomos percebendo, à medida que a campanha decorria”.
Mas o líder ressurgia, recuperava, dava a volta a essas dificuldades, engendrava saídas políticas – aquilo a que Brito chama “fôlegos do combatente”, e que vai descrevendo até aos sete do título.
Há por todo o livro sinais de como o PCP foi vivendo, da clandestinidade aos tempos em que se tornou aos olhos de todos a força que tudo controlava, ou queria controlar. Afinal, percebe-se, muitas vezes viu passar o poder ao lado, fez tentativas de domínio, consolidação, infrutíferas. E nem sempre, sequer, alguns chavos têm correspondência com a realidade que o autor deixa.
Por exemplo Vasco Gonçalves, que, afinal, fica como não seguidor das directivas do PCP, ou do próprio José Saramago e a linha que imprimiu ao Diário de Notícias, em 1975, a “mando dos comunistas” como insiste a direita caluniosa (pelos vistos): “Esta linha do jornal chocava-se muitas vezes com a linha conciliatória e as posições do partido a favor de um processo negocial entre as facções desavindas do MFA”, explica Carlos Brito. Como nota curiosa assinale-se que, apesar de tudo, foi o PCP que lhe aplanou o terreno para fixar-se no Alentejo a preparar o seu primeiro grande êxito literário, Levantados do Chão.
Muita matéria para repensar ideias feitas, portanto. Até pela descrição daquela espécie de implosão a seguir à queda do muro de Berlim, quando as vozes reformadoras encontraram forças para encetarem uma guerra contra o velho líder (pelo tempo que exerceu, pela idade que já tinha) já esvaziado de reservas para um oitavo fôlego. Um processo em que o autor, ele próprio, acabou por ser envolvido e que acabou por levá-lo à saída. Mas, mesmo assim, esta é uma memória sem rancores.
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Carlos Brito
Álvaro Cunhal sete fôlegos de um combatente
Edições Nelson de Matos, 25€