Assim se vê quem sai do PCP

A história do PCP dificilmente será dada por escrita. Com uma grande parte do passado oculto pela distância, mas sobretudo por um funcionamento interno que limita muito a visibilidade do exterior – apesar das “paredes de vidro” decretadas e justificadas por Cunhal – , a persistência dos investigadores esbarra nesses e noutros muros opacos.Muito tem sido feito no sentido de desvendar “segredos”, mas além das dificuldades referidas, alguns dos depoimentos que poderiam contribuir para aclarar pontos, políticas, situações, acabam em diatribes de ex-militantes – eles, sobretudo os melhor colocados enquanto foram militantes – , ajustes de contas, às vezes falsificação deliberada.A figura do lendário secretário-geral do PCP tornou-se uma lenda, mas também um alvo fácil e favorito dos desiludidos. Por um lado, isso resulta da vida privada cuidadosamente velada, por outro da prática política resguardada num colectivo – ele dizia sempre “nós, os comunistas pensamos…” – que remetia o protagonismo para um segundo plano e diminuía as probabilidades de identificar as determinações com a sua iniciativa. Ou seja, até que ponto o Comité Central era ele próprio?Raimundo Narciso é uma das figuras de testemunho habilitado. Cedo passou à clandestinidade, capitaneou o braço armado do PCP – a ARA (Acção Revolucionária Armada) – que agitou as hostes salazaristas com golpes de guerrilha de contestação à guerra colonial. Disso veio a prestar contas, igualmente em livro importante para a investigação (2000, na Dom Quixote). Foi, pós-25 de Abril, homem da Soeiro Pereira Gomes, vizinho do quotidiano do secretário-geral. E isso abona a explicação do seu abandono das fileiras comunistas, e do papel que atribui a Cunhal no remate do confronto que levou à sua expulsão (Mário Lino, depurado na mesma vezada, aí está no governo de Sócrates). Foi uma época agitada para os comunistas portugueses, com várias outras movimentações provocadas pela derrocada da muro de Berlim, os debates sobre Gorbachev, o papel dos comunistas (e da ex-URSS) na nova conjuntura mundial. “Nesta memória, mais importante do que o ‘filme’ das peripécias ou o andamento das divergências que o tempo (que se quis aguardar) já relativizou, é talvez o olhar que busca surpreender, no final da década de 80, as vivências no habitat do núcleo central do PCP”, sintetiza.Essas “peripécias” e “divergências” estão lá, no livro, no centro deste olhar sobre Cunhal, num “momento em que a História, com o colapso da União Soviética, traiu o grande desígnio do partido e do seu carismático dirigente que perante tão inaceitável apocalipse, no ocaso da vida e sem tempo ou sem vontade para dar ao PCP outro rumo, decidiu ignorar a realidade”. E estão lá porque aí nasce a “primeira grande dissidência no PCP, após a revolução do 25 de Abril de 1974”. Em suma, trata-se de uma memória que “procura não isolar os factos das emoções, das ‘certezas’, dos equívocos, das paixões que lhe deram vida”. A isenção que procura não evita, contudo, a acidez da desilusão com o partido de uma vida, a ruptura com uma ideologia que não se deu por dentro – precisou do detonador da História.

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Raimundo Narciso
Álvaro Cunhal e a dissidência da terceira via
Âmbar, 20€