Às ordens de sua majestade Angela Merkel

Chegou
recentemente às livrarias nacionais o mais recente ensaio do sociólogo alemão Ulrich
Beck, de 2012, que dá pelo sugestivo nome de “A Europa Alemã – De Maquiavel a
‘Merkievel’: Estratégias de Poder na Crise do Euro”.
Ulrich
Beck é um dos mais interessantes e estimulantes sociólogos contemporâneos, com
vários trabalhos publicados em áreas como a globalização, a individualização,
desigualdades sociais e mudanças no mundo laboral num contexto de
aprofundamento do capitalismo global.
Embora
a obra que o tornou mais conhecido seja “A
Sociedade do Risco: rumo a uma
nova modernidade” (“Risk Society: Towards a New Modernity), a que se seguiu
“Sociedade Mundial do Risco”, o sociólogo tem outros livros que merecem uma
leitura atenta. É o caso de “
The Brave New
Wolrd of Work” ou “A New Happy World”

(há uma edição em espanhol com o título “
Un Nuevo Mundo Feliz: la precaridad
del trabajo en la era da la globalización
”). Infelizmente nenhuma deles está traduzido para português.
“A
Europa Alemã – De Maquiavel a ‘Merkievel’: Estratégias de Poder na Crise do
Euro” é um ensaio muito lúcido sobre o que está a acontecer na União Europeia e
de como a chanceler Angela Merkel, com a sua tática do “nim” está a hegemonizar
um espaço geográfico, político e cultural de 27 diferentes povos. Na verdade,
como recorda o sociólogo, nenhuma decisão é tomada pelas instâncias europeias –
Comissão, Conselho e Parlamento – ou pelos governos nacionais sem o beneplácito
do governo alemão.
Logo
no prefácio Beck explica o objetivo do livro: propor uma nova interpretação da
crise, que se baseia na sua teoria da sociedade do risco, ou seja, “uma
modernidade fora de controlo”.
Beck
é contundente ao longo de todo o ensaio (pouco mais de cem páginas) e começa
por afirmar: “Todos sabem, mas dizê-lo abertamente significa quebrar um tabu: a
Europa tornou-se alemã. Ninguém teve essa intenção, mas, face a um possível
colapso do euro, a potência económica alemã ‘deslizou’ para a posição de
superpotência política com um papel decisivo na Europa.”
Exemplos
disso não faltam ao longo do livro, como o facto de ser o Bundestag alemão a
decidir o destino da Grécia face ao “pacote de ajuda” ao país, “associado a imposições
de austeridade e à imposição de a Grécia aceitar restrições à sua soberania
orçamental” (uma realidade que os portugueses conhecem bem). O sociólogo
expressa a sua perplexidade, sobretudo por tal situação não inquietar as almas
europeias. “Em que país, em que mundo, em que crise vivemos realmente quando
uma tal declaração de incapacidade de uma democracia passada a outra não causa escândalo?”, interroga,
concluindo: “A Alemanha decide, hoje, sobre o Ser ou Não-ser da Europa”, frase
que resume “o estado de espírito e da política do nosso tempo”.
O
professor de Sociologia da London School of Economics e da Universidade de
Harvard defende que esta crise, mais do que económica, é uma crie da sociedade
e do “político”, bem como da compreensão da sociedade e da política.
Não
é por acaso que os alemães – para quem o “poder” continua a ser uma palavra
suja e gostam de substituí-la por “responsabilidade” – estão furiosos porque o
seu dinheiro é desperdiçado nos gregos na bancarrota (e nos restantes povos dos
países intervencionados).
Angela
Merkel tem bem presente o sentimento dos eleitores alemães – e quer ser
reeleita em setembro –, conduzindo os destinos da Europa ao sabor dos seus
interesses pessoais e da Alemanha.
Ulrich
Beck estabelece o paralelismo comportamental de Merkel e de Maquiavel, o
primeiro pensador a conceber uma forma de poder que pode ser forjada a partir
das turbulências do tempo. “Foi precisamente isto que fez Angela Merkel:
aproveitou a oportunidade que lhe foi oferecida e alterou as relações de poder
na Europa.”
A
chanceler alemã, que muitos veem como “a rainha não coroada da Europa”, explora
uma marca caraterística da sua ação: a “tendência para não agir, não agir
ainda, agir mais tarde – para hesitar. Merkel hesitou desde o início da crise
na Europa e continua a hesitar até hoje”, afirma Beck, defendendo que o seu
verdadeiro interesse “não está em salvar em primeiro lugar os países devedores,
mas sim em ganhar as eleições na Alemanha”. Ou seja, “ela faz uma política
interna europeia que serve sobretudo à preservação do poder nacional”.
Outra
caraterística típica da chanceler consiste na sua agilidade, revelando-se
“mestre do ‘resgate no último minuto’”.
Por
isso Beck estabelece o modelo “Merkiavel”, estabelecendo a afinidade política
entre a chanceler o Maquiavel em quatro componentes: não toma partido e mantém
em aberto todas as opções contraditórias, condicionando a disponibilidade da
Alemanha de conceder crédito à disponibilidade de os países devedores cumprirem
as condições da política de estabilidade alemã; pratica a hesitação como tática
de dominação, ou seja, não a entrada agressiva de dinheiro alemão mas a ameaça
de saída, a protelação e a recusa de créditos; concilia a elegibilidade
nacional e o papel de arquiteto europeu, sendo temida no estrangeiro e amada no
seu país, através de um neoliberalismo brutal para fora e um consenso com
caraterísticas de social-democracia para dentro; prescreve aos países parceiros
o que é considerado na Alemanha a fórmula mágica para a economia e a política:
a poupança para conseguir a estabilidade.
Face
à crise, aos programas para salvar o euro e à estratégia política da Alemanha,
a Europa está dividida. Beck estabelece três dimensões da nova desigualdade: a
cisão entre países da zona euro e países da UE; a cisão dentro do grupo dos
países da zona euro (países credores versus
países devedores); e cisão numa Europa a duas velocidades.
O
que está em causa é muito mais do que impedir o colapso do euro. É “o colapso
dos valores europeus de abertura ao mundo, paz e tolerância”, conclui Beck. Um
ensaio estimulante.
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Ulrich
Beck
A Europa Alemã – De Maquiavel a
“Merkievel”: Estratégias de Poder na Crise do Euro
Edições
70, 12€