Artur Azul: Mente e Consciência

1. Como podemos conciliar Filosofia e Neurociência?
R- Ainda que, por vezes, alguns cientistas pensem que a Filosofia não lhes interessa em nada para o seu trabalho específico, a verdade é que, como diz o filósofo e cientista Daniel Dennett, «não há tal coisa como ciência livre de filosofia; há apenas ciência cuja bagagem filosófica é tomada a bordo sem examinação». Tem de se esclarecer, à partida, que à filosofia não cabe o papel de se substituir à ciência; é a esta que cabe a função de investigar, produzir conhecimento objetivo sobre o domínio que investiga e verificar empiricamente a validade desse conhecimento. À filosofia não lhe cabe a função de produzir conhecimento ao nível empírico. No entanto, a filosofia tem o direito de se situar “aquém” e “além” da ciência: (1) “aquém” no sentido em que não se faz ciência sem um fundo de pressuposições e orientações que a filosofia tem o direito de questionar e procurar esclarecer (por exemplo, os conceitos utilizados pela ciência, a adequação dos métodos empregues, face aos objetivos visados, etc.); e (2) “além” no sentido em que, após a obtenção dos conhecimentos científicos, há de novo lugar para a intervenção da filosofia, relacionando esses conhecimentos com outras áreas dos saberes e atividades humanas (questões éticas, socioculturais, etc.) e procurando perspetivas mais abrangentes. Portanto, entre filosofia e neurociência, não se trata de obter uma conciliação no sentido em que ambas estejam de acordo ou que cheguem às mesmas conclusões; no entanto, podemos falar de uma ação complementar entre essas duas disciplinas do pensamento.
2. Que ideias estão na origem da reflexão e escrita deste livro?
R-Como digo no Prefácio do livro, «o presente trabalho teve, como ponto de partida, algumas ideias ou conceções que foram surgindo, de forma embrionária, na sequência de algumas leituras prévias nos domínios filosófico e científico sobre a mente e a consciência». As funções ou faculdades de uma mente consciente – perceção, emoção, memória, volição, pensamento, etc. – são, para mim, uma temática fascinante, pois representam o domínio central do nosso ser enquanto pessoas. A minha formação filosófica levou-me a procurar obras de filosofia nessa área e verifiquei que existiam muito poucas publicações em português. Os principais filósofos contemporâneos da mente e da consciência situam-se no espaço geográfico habitualmente designado por “mundo de fala inglesa” e há pouquíssimas traduções das suas obras para português. Por outro lado, temos o neurocientista português, António Damásio, que é uma referência a nível mundial no domínio da neurociência. Daí, o reforço do meu interesse por esta disciplina que, nas últimas décadas tem sido bastante falada, sobretudo devido às múltiplas descobertas sobre o funcionamento do cérebro humano e possíveis explicações sobre a consciência. Após alguns anos de leituras e pesquisas nestes dois domínios – filosofia e neurociência –, constatei que não havia praticamente nada publicado em português que conjugasse estas duas áreas disciplinares. Daí, que tenha encarado o desafio de escrever um trabalho sobre a mente e a consciência que abordasse ao mesmo tempo as perspetivas da filosofia e da neurociência.
3. A mente humana é, ainda, um enorme desafio ou estamos a começar a descobrir cada vez mais elementos concretos e esclarecedores?
R-A mente humana abrange uma grande diversidade de funções ou faculdades, desde as perceções e emoções, até aos pensamentos mais complexos e sublimes, passando pela memória, imaginação, crenças, desejos, intenções, etc. Além disso, acompanhando todas essas funções temos, em maior ou menor grau, a consciência. A consciência é aquilo que mais direta e intimamente conhecemos, pois é, por definição, a nossa própria presença, sentida, percebida ou projetada, que acompanha os nossos estados e eventos mentais. No entanto, a consciência e a mente em geral representam efetivamente um enorme desafio para as ciências da mente, designadamente, para a neurociência. A razão disso reside no facto de a consciência, assim como muitas funções mentais, ocorrerem na interioridade de cada um, sendo diretamente acessíveis apenas ao próprio sujeito em que ocorrem (subjetividade e perspetiva de primeira pessoa), ao passo que a ciência exige a objetividade e a perspetiva de terceira pessoa (observação de um ponto de vista exterior ou intersubjetivo). O conhecimento do funcionamento do cérebro tem aumentado muito com as investigações neurocientíficas. Por exemplo, sabe-se que, quando ocorrem certos tipos de emoções, quando falamos ou estamos atentos, quando resolvemos problemas ou quando planeamos ações, certas regiões ou órgãos do cérebro entram em atividade (aumentando o fluxo sanguíneo, interagindo com outras regiões ou órgãos, segregando certos tipos de substâncias, etc.). A neurociência investiga os processos neurofisiológicos do cérebro e procura estabelecer relações ou correlações desses processos com as funções da mente consciente – os chamados “correlatos neurais da consciência”. No entanto, esses correlatos não são ainda uma explicação da consciência. Ainda não temos uma explicação científica completa de como, a partir dos constituintes físicos, biológicos e neurofisiológicos do cérebro se chega a uma mente que funciona do modo como estamos familiarizados e com uma consciência subjetiva e qualitativa. Esse é um desafio que alguns estão convencidos de que virá a ser alcançado, enquanto outros acham que nunca isso nunca será possível, dada a natureza específica da consciência, perante os métodos objetivos da investigação científica.
Voltando ainda à questão das ideias na origem deste livro, acrescentaria que um dos principais objetivos foi o de procurar esclarecer certos “mal entendidos” e dogmas que ainda predominam quer na filosofia quer na neurociência acerca da consciência. Um desses dogmas surge da parte de alguns neurocientistas das últimas gerações, que assumem que a neurociência deve adotar uma posição fisicalista reducionista – o que os leva à convicção de que a consciência é completamente explicável a partir dos processos neurofisiológicos do cérebro. Contra esse dogma eu procuro esclarecer que a consciência tem uma natureza irredutível a esses processos neurofisiológicos e, por isso, tem de se admitir a necessidade de uma perspetiva diferente. A consciência tem dois níveis de emergência: o senciente e o pensante. Cada um desses níveis resulta do domínio biológico subjacente, mas com a emergência de propriedades ou características inteiramente novas: as sensações, perceções, emoções, volições – no domínio senciente; e o pensamento, a linguagem, a comunicação verbal e simbólica – no domínio da consciência pensante (que continua a ter uma dimensão senciente, mas que também é capaz de autoconsciência e de desenvolver uma memória autobiográfica). E isto implica uma abordagem filosófica, com uma nova perspetivação ontológica – que é a proposta da terceira e última parte do livro.
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Artur Azul
Mente e Consciência
Guerra e Paz  19€