António Marques: “Apresentar a ideia de paz de um ponto de vista filosófico”

1-Qual a ideia que esteve na origem deste seu novo livro «Paz»?
R-A principal motivação foi a de apresentar a ideia de paz de um ponto de vista filosófico, ou seja, enquanto valor permanente e irredutível, sem o qual outros valores (liberdade, justiça, por ex.) não são possíveis.  Trata-se de um valor que preencheu mais ou menos explicitamente o imaginário filosófico e político da Europa da modernidade e que é tema central do pensamento filosófico de autores fundamentais como Grotius, Hobbes, Rousseau ou Kant. Claro que o tratamento da paz e da guerra também já fora um tema importante dos medievais, mas são as soluções propostas pelos filósofos modernos que se projectaram para os nossos dias, de tal forma que, por assim dizer, as suas soluções são, em grande, parte as nossas soluções e de algum modo, a sua linguagem é ainda a nossa linguagem. É claro que o impulso para a escrita deste ensaio também foi determinado pela circunstância de experimentarmos neste momento a realidade da guerra, sentida como algo existencialmente ameaçador e não como um fenómeno distante. Acontece que as análises e reflexões dominantes a que temos acesso mediático, pertencem à categoria da geopolítica ou do chamado realismo geopolítico. A este interessa sobretudo, ou exclusivamente, a descrição da relação de forças e a dinâmica político-militar entre os países. Nessa descrição pouco ou nada contam os consensos entretanto estabelecidos em torno dos direitos humanos e da soberania dos povos. Tais consensos são a base do direito internacional que juristas e teóricos das relações internacionais, consideram ter uma normatividade inferior ao direito de cada Estado. Mas o problema é saber se por essa razão ele deve ser abandonado ou, pelo contrário, robustecido. Achei, pois, que faria todo o sentido estudar aquilo a que chamei a genealogia do conceito de paz na nossa tradição filosófica, a qual culmina com a proposta kantiana de paz definitiva ou perpétua. No pequeno tratado com esse nome (1795), Kant identifica os princípios em que deve assentar uma paz que não seja uma mera ausência de guerra. Esse texto teve grande influência na formação de instituições internacionais, tanto depois da primeira, como da segunda guerra mundial. Igualmente a centralidade dos direitos humanos, assim como da autonomia dos povos, pertencem em grande medida ao legado dessa proposta kantiana. O ideário de uma paz assente em princípios do direito internacional parece a muitos uma utopia impossível, mas é bom que tenhamos em conta que a actual alternativa oferecida pelos adeptos do puro realismo geopolítico é simplesmente a paz transitória da lei do mais forte.

2-Nós, portugueses e europeus, passámos muito rapidamente da ideia de que a Guerra era algo de distante e improvável para a ideia de existir mesmo um perigo muito grande para a Paz: do seu ponto de vista ainda estamos a tempo de alterar esta percepção que parece bem real?
R-É uma questão que se prende com a resposta anterior. De facto, se as regras de relacionamento internacional que as nações entre si acordaram na Carta das Nações Unidas, logo após o fim da segunda guerra mundial, forem substituídas pela lei do mais forte, então é toda uma ordem mundial que subitamente se desmorona. É o que hoje acontece, sobretudo quando potências que fazem parte do Conselho de Segurança da Nações Unidas se lançam em aventuras expansionistas, quer para capturar a Ucrânia, quer a Gronelândia ou a Faixa de Gaza. Isso não quer dizer que no período após a segunda guerra não tenha havido violações graves do direito internacional prescrito nessa Carta e o mundo vivesse totalmente de acordo com aquele, quer se considere o bloco liberal, quer o russo e chinês. Mas a meu ver o que a situação actual traz de novo é que essas violações tomaram a forma de ocupações militares perpetradas por membros do Conselho de Segurança da ONU, tanto por razões de mitologia histórica (Putin e a inexistência da Ucrânia), como por razões explicitamente transacionais (Trump e os minerais raros, a “Riviera de Gaza”, etc.). A percepção do perigo claro e presente de toda esta situação é bem real e infelizmente os Estados que ainda poderiam contrariar esta dinâmica, os Estados de Direito, sobretudo os europeus, encontram-se, ou deixaram colocar-se, numa situação de grande fragilidade.

3-Estamos no princípio de 2025 e temos duas guerras em curso (invasão da Ucrânia pela Rússia e agressão de Israel à Palestina). Temos ainda um clima de tensão e incerteza com a chegada ao poder de Donald Trump nos EUA. Como podemos nós, cidadãos portugueses e europeus, contribuir a manutenção de uma paz duradoura?
R-Neste contexto penso que o que há a fazer é reforçar a União Europeia, como associação livre de Estados democráticos de direito. Pode parecer um objectivo votado ao fracasso, dadas as conhecidas disrupções internas e externas, mas não vejo alternativa que não resulte no isolamento de cada Estado europeu ou na integração de cada um deles num dos grandes blocos, o americano ou o chinês. Se isto é verdade para países como a Alemanha, por maioria de razão será para Portugal. Não é por acaso que um ponto central das estratégias de Putin e de Trump é o de desarticular a União Europeia, enquanto entidade política e económica alternativa, defensora do direito internacional e dos direitos humanos. Também é importante notar como os realistas geopolíticos quase nunca a consideram como um factor importante nas suas análises e, quando consideram, é apenas para acentuar a sua fragilidade ou irrelevância no plano de uma dinâmica global dominada pelos dois grandes blocos geopolíticos. Voltando ao livro, penso que ele pode ser lido como uma tentativa de relançar a actualidade do projecto kantiano de paz definitiva, acima mencionado. O próprio Kant não o concebe como algo que um dia necessariamente se concretizará, mas o que argumenta é que, definidos certos princípios – a federação livre de repúblicas soberanas e o primado do direito – é possível uma continua aproximação desse horizonte. Daí o seu esforço por refutar que a paz definitiva, assim concebida, seja uma utopia, já que os princípios desse projecto podem ter uma realidade prática. Importantes filósofos contemporâneos como Hans Kelsen e John Rawls desenvolveram teorias que vão nesse sentido.
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António Marques
Paz
Edições 70  15,90€

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