António Ladeira | Eu Vi Jardins No Inferno

1. O que representa, no contexto da sua obra, o livro ‘Eu Vi Jardins no Inferno’?
R- Representa uma inflexão importante relativamente aos dois livros anteriores. Tanto Todas as Línguas São Estrangeiras como A Minha Cor Favorita é a Neve privilegiam uma certa meta-poesia e auto-referencialidade. A Minha Cor Favorita…, sobretudo, tem um tom consideravelmente surrealizante, fruto da influência – entre muitos outros poetas – de autores como Herberto Helder, Mário Cesariny, António Maria Lisboa, etc. Eu Vi Jardins no Inferno ainda revela, aqui e ali, uma componente lírica no sentido tradicional – o tom confessional, a primeira pessoa, etc – mas é sobretudo um livro de narrativas, onde se contam histórias na terceira pessoa, ao contrário dos anteriores.
É um livro sobre os infernos ‘normais’ do quotidiano. Mas, também, sobre os pequenos prazeres – os jardins – que existem até nos ‘infernos’ clássicos, convencionais. Ao contrário do que possa parecer, vejo-o como um livro de um grande optimismo.


2. Qual a ideia que esteve na origem do livro?
R- O que está na origem dos livros é sempre um pouco misterioso para mim, o que não significa que haja algo de muito transcendente ou interessante nesse mistério, ou no seu eventual desvendamento. Lembro-me de me ter apetecido contar ‘histórias’ em verso depois de reler parte do ‘Inferno’ de Dante. Foi alguma daquela energia, da estranha beleza estilizada (num certo sentido, ‘sublime’) daquele desespero – salvaguardando-se as devidas diferenças, claro – que procurei evocar. Também me tem interessado muito, ultimamente, essa voz cheia de gravitas – com a qual procuro, por vezes, dialogar de modo descomplexado e bem-humorado – que encontramos em obras basilares da literatura mundial como A Odisseia, A Ilíada, A Eneida, etc.


3. Pensando no futuro, o que está a escrever neste momento?
R- Estou a reunir um conjunto de textos com algumas características semelhantes ao anterior, a narratividade, por exemplo. O título provisório é A Casa Rodeada de Leões. Refere-se mais explicitamente ao quotidiano, ao aparentemente pedestre da vida familiar e profissional que, rapidamente, neste caso, nos remete para as vastas paisagens, para os grandes temas humanos – amor e ódio, vida e morte, culpa e expiação, etc. Tenho uma relação humilde e paródica com a ‘grandiosidade’ em poesia – como em Herberto Helder, por exemplo – porque me sinto atraído por ela, apesar de ter consciência do perigo que há em nos aproximarmos demasiado do que nos fascina (como na viagem de Ícaro). Não me convence o que me parece ser umas das actuais tendências da poesia portuguesa para o coloquial, o ‘rasteiro’, o ‘quotidiano banal’, o ‘fait-divers’, a anedota fácil ou a máxima, onde se tem horror à dita poesia elevada, que assim se rejeita, se entendo bem, por ser supostamente pretensiosa, artificial e formulaica. Como se a busca intrépida do ‘não-poético’ não fosse também artifício e dos mais cultivados e antigos. Os excelentes poetas que existem nessa ‘tendência’, são, na minha opinião, os que de certo modo extravasam  esses limites auto-impostos.
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António Ladeira
Eu Vi Jardins no Inferno
Palimpsesto