António Costa Silva: “Vivemos num mundo com excesso de informação e défice de pensamento”
1-Qual a ideia que esteve na origem do livro «Portugal e o Mundo numa Encruzilhada. Para Onde Vamos no Século XXI»?
R- O mundo está numa mudança profunda e a crise pandémica acelerou essa mudança e expôs todas as fragilidades do modelo de desenvolvimento económico e social que formata a vida das nossas sociedades. Compreender o que nos está a acontecer, que tendências estruturais impulsionam a mudança ,quais os desafios que se colocam e para onde vamos, foi a ideia que esteve na base do livro.
2-Ao longo do livro, percebe-se a sua preocupação em compreender e, se possível, impedir que o que chama «cascata de crises» continue no século XXI?
R-A cascata de crises está aí com os seus efeitos múltiplos e devastadores. No caso de Portugal e da Europa temos a crise financeira e económica de 2008/9, seguida da crise das dívidas soberanas, a crise do próprio projeto europeu, a crise dos refugiados, a instabilidade no Médio Oriente e no Norte de África, a pressão das migrações, o revanchismo russo, os ciberataques, o agravamento da crise climática e ambiental (conforme ficou demonstrado este ano), a crise pandémica. A preocupação é compreender a natureza e a génese destas crises e encontrar respostas. Nós vivemos num mundo com excesso de informação e défice de pensamento, não estamos a saber “ler” a complexidade que nos rodeia e é essencial começarmos a fazê-lo, sob o risco, se não o fizermos, de o futuro ser sombrio.
3-Apresenta no livro várias «ideias para mudar Portugal». A primeira (Mudarmos o nosso quadro mental: sermos um país com mais «nós» e menos «eus»; fomentar o espírito de cooperação a todos os níveis): como podemos encetar esta mudança numa sociedade cada vez mais individualista?
R-A crise pandémica está a alterar o paradigma existente. Mostrou que dependemos uns dos outros, que temos de cooperar uns com os outros e olhar mais para o que nos une do que para o que nos separa. A crise restabeleceu o significado da solidariedade e do papel da comunidade e, se olharmos para a história, como o fez notar a pensadora alemã Hannah Arendt, as sociedades que têm um elo coletivo , que têm um desígnio e onde as relações comunitárias são fortes, são aquelas que têm uma performance superior e resolvem mais facilmente os seus problemas. Em Portugal somos muito individualistas, somos uma sociedade de cidadãos desgarrados, falamos pouco uns com os outros, mas se reconstruirmos as relações comunitárias, com a disseminação das plataformas colaborativas de cidadãos e a mobilização dos saberes do país nas diferentes áreas, podemos ter uma transformação criando uma sociedade civil mais activa e mais iluminada, capaz de responder aos desafios.
4-O contexto global em que vivemos (discussão sobre o futuro da Europa, alterações climáticas, transição digital, efeitos da pandemia, etc.) ainda possibilita que um pequeno país como o nosso tenha uma palavra a dizer sobre o seu próprio futuro?
R-Cada um de nós tem uma palavra a dizer sobre o seu futuro. Isso não depende do tamanho , depende da atitude perante a vida. Se superarmos o fatalismo e o conformismo habituais, se compreendermos, como diz o escritor moçambicano Mia Couto que “a vida é demasiado preciosa para ser esbanjada num mundo desencantado”, há muito que podemos fazer por nós próprios, pelas nossas famílias e comunidades, pelo ambiente, pelo planeta, pela sustentabilidade, pela mudança do estilo de vida consumista e predador dos recursos. Isso depende de cada um de nós e das nossas escolhas e cada uma delas pode ser um contributo para a mudança geral. A pandemia mostrou que um pequeno vírus pode pôr o mundo de pernas para o ar e a disseminação destes vírus é mais facilitada com a destruição da biodiversidade do planeta provocada pelo nosso estilo de vida. Preservar o capital natural e os ecossistemas depende de cada um de nós e não de um centro decisor que algures vai resolver os problemas do mundo.É precisamente esse modelo “centralista” que faliu com esta crise e é importante que os cidadãos o compreendam e se mobilizem.
5-Vivemos mais de quarenta anos de democracia e com sucessivos e variados governos (da direita à esquerda, alguns com maioria absoluta no Parlamento): do seu ponto de vista, que factores têm impedido que se tenham aprovado e concretizado as mudanças por si consideradas ainda essenciais?
R-Os fatores são inúmeros: a falta de continuidade e persistência das políticas públicas; a falta de inteligência de algumas dessas políticas públicas e a escassa avaliação do seu impacto na sociedade; as mudanças constantes de orientação , não só quando mudam os governos mas às vezes dentro do mesmo governo; o autismo de muitos partidos políticos e o seu crescente divórcio dos cidadãos; o tacticismo muitas vezes prevalecente na política, muito preocupada com a próxima eleição, pouco preocupada com a próxima geração; a debilidade das sociedades democráricas e dos governos democráticos que são tiranizados pelo absolutismo do presente e pela pressão mediática constante e portanto focam-se no curto prazo e ignoram o pensamento para o médio e o longo prazo, que são determinantes para construir um caminho de futuro ; a incapacidade de distinguir o urgente do importante; a incapacidade de desenvolver uma visão estratégica capaz de mobilizar o país; a fraca atenção dada ao papel das empresas na transformação da economia e na luta contra a estagnação económica do país, que tem sido a caraterística dominante neste século; a não solução do gravíssimo problema da descapitalização das empresas, sem o qual é mais difícil criar riqueza e prosperidade; o desempenho ainda pouco satisfatório nas qualificações das pessoas e sem uma população altamente educada a pobreza é o resultado.
6-Considera possível, no curto prazo, encontrar os consensos políticos indispensáveis para que Portugal se possa mesmo transformar?
R-Vai ser difícil. Nós vivemos a era da “política negativa”, como lhe chamou o pensador francês Pierre Rosanvallon. Isto significa que na política domina a rejeição e não a busca do acordo, quando necessário. Por vezes nem se ouve o outro e já estamos contra. A história mostra que muitas vezes as grandes transformações acontecem quando se cria um compromisso entre as grandes forças políticas para resolver os problemas que afectam milhões de pessoas e criam sofrimento e desespero. Compromisso não significa fraqueza, não significa apagar as diferenças políticas. Significa, para as questões essenciais e decisivas, construir acordos pensando primeiro no país e na necessidade premente de enfrentar os problemas da pobreza, da estagnação económica, dos baixos salários, da precaridade no trabalho, da incapacidade de criar riqueza e de dar um salto no desenvolvimento económico e social. As crises são frequentes na história dos países; as transformações fundamentais são raras, mas estas só se verificam se existir a vontade e a inteligência de construir os compromissos necessários. Isso dá trabalho mas é o que conta e o que fica.
7-Finalmente, apresenta 20 «projectos âncora» para transformar o nosso país em 10 anos. Se pudesse decidir hoje, por onde deveríamos começar?
R-O projeto mais importante que pode catalizar tudo o resto é a educação, é aumentar as qualificações da população. Apesar de todos os avanços nos mais de 40 anos de democracia, nós ainda somos dos países da União Europeia com pior desempenho na percentagem da população activa que termina o ensino secundário. Se daqui a 10 anos estivermos alinhados ou acima da média europeia, isso será um salto transformador. Não podemos construir uma sociedade tecnologicamente avançada, promover a digitalização, fomentar a inovação, criar empresas mais competitivas e mais internacionalizadas, se não tivermos uma população altamente qualificada e se não tivermos políticas activas para fazer face à retração demográfica. Neste quadro é importante ter soluções multidimensionais explorando as valências da diáspora (temos mais de 5 milhões de portugueses que vivem fora do país), construindo políticas de natalidade activa e políticas de acolhimento de imigrantes. É também essencial desenhar formas para a atração e fixação no país dos estudantes estrangeios que aqui estudam e, simultaneamente, contruir políticas para a atração dos ”nómadas digitais” que são trabalhadores qualificados que podem viver e trabalhar em qualquer lugar, e, se inseridos na economia local, podem trazer muitas vantagens. Mais população e mais altamente qualificada é aquilo que pode mudar tudo.
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António Costa Silva
Portugal e o Mundo numa encruzilhada. Para onde vamos no século XXI
Bertrand 18,80€