André Santos Campos: “Podemos ter um sistema judicial a funcionar muito bem numa sociedade profundamente injusta”

1-Qual a ideia que esteve na origem deste seu livro “Justiça”?
R-A ideia por detrás da coleção Filosofia & Valores é a de fornecer ao público um conjunto de ensaios contendo o estado da arte da discussão filosófica sobre alguns dos principais valores. Começámos por compor uma lista de doze valores, e cedo percebemos que a Justiça teria um lugar cimeiro nessa lista, mesmo que haja quem critique a consideração da justiça como valor (tema que abordo na conclusão do livro). Não podia ser de outra forma: não só é um dos temas mais discutidos na história da filosofia, sobretudo a partir d’A República, de Platão, como é a temática que ocupa a quase totalidade dos trabalhos em filosofia política nos últimos decénios. Alguns dos valores que incluímos na coleção são, aliás, tratados de maneira subordinada à justiça. Este volume opera uma arrumação dos modos de se pensar a justiça, sendo bem mais abrangente do que uma mera listagem das mais comuns concepções de justiça social. Nesse sentido, vem colmatar uma lacuna no mercado editorial português porquanto tanto pode ser lido pelo público geral como usado com intuitos didáticos.

2-Porque é tão fácil apontar exemplos de injustiça mas tem sido tão difícil definir Justiça?
R-A injustiça não é tão-só o oposto de um valor ou uma falha na concretização de um valor. É algo mais do que isso: é a designação que damos às intuições morais, muitas delas fortes, de que certos tipos de desequilíbrios (na distribuição de um bem, nas relações entre pessoas, no acesso ao poder político, etc.) são inaceitáveis e injustificáveis. Esse senso é quase primitivo e opera ao nível das emoções e dos vieses cognitivos, não sendo necessário para tal uma concepção de justiça já delineada e clarificada. Esta última, ao invés, depende de um trabalho que ocorre já ao nível do pensar porquanto requer a definição do que se entende por esse equilíbrio que sentimos ser desejável, mas que apenas espreita por detrás das nossas intuições do injusto. Essa é a tarefa a que se dedica a filosofia, retomando no exercício do pensar a matéria-prima que é trazida pelo senso-comum e pelo opinar que lhe está acoplado (o “acho que”, a emoção, a indignação) para lhe dar uma forma e, sobretudo, uma substância, um conteúdo explicativo e, porventura, orientador.

3-A que se deve a má imagem que a Justiça e o sistema judicial têm na sociedade portuguesa?
R-Uma das conclusões a que facilmente chegará um leitor deste livro é que a equiparação da justiça ao sistema judicial está longe de ser rigorosa e pode até ser incorrecta. Não só a justiça designa muito mais mundo do que aquele que acontece no âmbito judicial, como é até questionável que o sistema judicial esteja ao serviço de uma concepção de justiça social, mesmo uma prevalecente na sociedade em que se situa esse sistema judicial. Será mais respeitador da justiça percebermos que o sistema judicial está ao serviço do direito, não da justiça, e que não tem necessariamente de haver uma sinonímia entre direito e justiça (parece contraintuitivo o que estou a dizer, mas creio que o livro clarifica esse aspecto). No caso português, a falta de confiança no sistema judicial tem as suas causas há muito identificadas: a lentidão dos processos, o aparente excesso de mecanismos de contestação e prova, a pouca correspondência entre a percepção pública do volume de trabalho do Ministério Público e os resultados práticos de decisões judiciais que lhe sejam favoráveis, e, porventura de maneira mais flagrante, a percepção de que o sistema judicial é muito mais eficaz perante cidadãos com menos recursos do que perante cidadãos com mais influência e recursos. Estas causas têm uma gravidade distinta do ponto de vista da justiça social, sendo a última a mais relevante. Mas isso também significa que quando o sistema judicial falha da perspetiva da justiça social, não está a revelar senão um sintoma de uma doença mais geral da sociedade que serve. Acima de tudo, é preciso percebermos que podemos ter um sistema judicial a funcionar muito bem numa sociedade profundamente injusta e uma sociedade toleravelmente injusta em que o sistema judicial funciona de maneira subótima, mas não péssima (que, convenhamos, é o que sucede com o nosso sistema judicial, onde as leis e as sentenças não são desprovidas de qualidade técnica e o grau de corrupção dos decisores é muito baixo e invejável, sobretudo em comparação com outros países).
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André Santos Campos
Justiça
Edições 70   19,90€

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