Ana Paula Jardim: “O desassossego que nos deixa”

1-No ano do centenário de José Saramago, qual o principal legado do escritor?
R-É conhecida a célebre afirmação de Saramago saberemos cada vez menos o que é um ser humano. Uma epígrafe que serve de mote ao Livro das Previsões, inscrito na contracapa de um dos seus mais célebres textos: Intermitências da Morte. Saberemos cada vez menos o que é um ser humano porque, na verdade, aquilo que somos não é objetivável. Somos muitas coisas que as palavras não conseguem dizer. E somos capazes de muitas coisas que as palavras não conseguem descrever. Temos em nós a grandiosidade da criatividade e somos autores dos feitos mais belos, mas também dos mais destrutivos. Saramago como leitor do mundo, da vida e da condição humana exprime-o admiravelmente através da sua literatura e da sua poesia. Como ele próprio diz somos iguais aos deuses inventando. A sua vida pessoal literária foi uma demanda em busca dessa resposta. O seu grande legado é o desassossego que nos deixa, a forma como as suas palavras nos obrigam a refletir e a questionar o mundo em que vivemos. De lutar contra o conformismo. Como leitora da sua obra a sua grande marca é um acordar da consciência, a forma como dialoga comigo e me desinstala das certezas. A forma como estrutura e reconfigura a minha própria existência. Não só como alguém que escreve ou se interessa por literatura, mas, sobretudo, como pessoa e cidadã.

2-Qual é o seu livro preferido escrito pelo nosso Nobel?
R-O meu primeiro impulso seria referir o Memorial do Convento. Não só por ser um romance histórico notável, mas pela atualidade da uma mensagem que é política, social e cultural. Porque os grandes feitos são sempre construídos com base na desigualdade e na exploração. Também pela intensidade e beleza de algumas das suas personagens. Seria uma escolha óbvia. No entanto, o livro que quero sublinhar é O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Como grande humanista que é, a questão de Deus não poderia ficar de fora. Dedicou-lhe tempo, atenção e energia. Questionou-o sem contemplações. O Evangelho segundo Jesus Cristo não é só uma visão crítica dos acontecimentos históricos e bíblicos desta figura central, deste Deus crucificado, mas um questionamento do lugar do divino no coração da humanidade. É certo que os textos bíblicos e a Igreja que os institucionalizou foram sempre lugar de inúmeras exegeses e interpretações e de inúmeras fraturas e também lugar do exercício do poder (de todos os movimentos de Reforma e Contrarreforma de que foi alvo ao longo da história de forma sangrenta). Nunca como agora se assistiu a uma proliferação tão grande de inúmeras denominações cristãs e das consequentes exegeses dos chamados textos sagrados, cada uma reivindicando a verdade universal. Mas isso não apaga a inesgotável fonte de riqueza, ensinamentos e questionamento. E existe a diferença do Jesus mediado pelo discurso religioso, filtrando as suas palavras e o Jesus intemporal, pessoal, que mora no coração dos homens. Uma diferença fundamental e uma experiência que a lógica e a ciência nunca poderá descortinar ou entender. José Saramago questionou o lugar do divino com o mesmo desassombro com que denunciou, toda a sua vida, o lugar da condição humana. Por isso também ele é filho de Abraão porque ser filho de Abraão significa responder ao chamamento, dar início à viagem, tornar-se um estranho. É esse o significado da fé. É desinstalar-se do que é familiar, confortável, seguro e dirigir-se rumo ao desconhecido. O chamamento é a afirmação de que a relação com Deus, ou com o divino se quisermos (origem das palavras e da língua) não é uma relação de pertença, mas de estranheza. Por isso, somos todos estrangeiros em busca da terra prometida.

3-Razões dessa escolha?
R-Por duas razões fundamentais: A primeira por ter provocado polémica e ter sido censurado. Este Evangelho ou anti Evangelho (como lhe quisermos chamar) foi, desde o início, aquando da sua publicação um livro amado e odiado. Justamente porque foi proferido por alguém cujas palavras são incomodativas. Pela ousadia do tema. Pelo questionamento de dogmas de fé. Foi este o motivo principal que presidiu ao veto protagonizado em 1992 pelo então subsecretário de Estado e da Cultura, António de Sousa Lara que o riscou da lista de concorrentes ao Prémio Literário Europeu. Um ato de censura reprovável porque o pensamento é o lugar da nossa liberdade. Esse foi sempre um dos lemas de Saramago. Foi um livro disruptivo que provocou uma tempestade e uma mudança (como, aliás, é característica de todas as grandes obras). Não só no meio literário e político, mas também a nível pessoal. Foi este ato de censura que o levou a rumar para a ilha de Lanzarote onde permaneceria até ao fim dos seus dias. Logo a seguir viria o Nobel.
A segunda porque este tema é um dos meus temas e porque me interessa. Cristo é uma das figuras ou a figura central da história da humanidade. Não há dúvida sobre isso. É também uma figura polémica que não deixa ninguém indiferente e isso é fascinante. Para além das questões estritamente canónicas ou de fé, foi um revolucionário. Ainda assim, este homem que nada deixou escrito fez da palavra e da parábola o seu instrumento de mudança e fala-nos do poder da linguagem como a característica incontornável do humano. Esse é também o instrumento do escritor, do historiador, do cientista ou do artista. Com elas construímos o mundo, atribuímos-lhe um sentido. Seja o alfabeto da ciência, da literatura, da arte ou da fé. É isso que faz também José Saramago. Como escritor e mestre da língua o nosso autor sabe e entende o mistério da língua como o território do humano. Concretizou esse enigma de forma admirável nos inúmeros textos que nos legou, nas personagens que criou e que já constam do léxico e da memória coletiva. Quer se chamem Blimunda, Baltazar ou o Padre Bartolomeu, o inventor da Passarola que perseguia o sonho de voar e morreu doido (para citar algumas das mais conhecidas).
__________
Ana Paula Jardim, Escritora