Ana Paula Jardim: “Este livro constitui uma grande metáfora de gente enferma”
1-O que representa, no contexto da sua obra, o livro «Enfermaria»?
R-Escrevi, apenas, dois livros de poesia. Não sei se posso falar em obra, uma palavra que não gosto porque é indicadora de algo que está fechado e, em termos de escrita, está sempre tudo em aberto. Enfermaria é um texto que já existia muito antes de o escrever. Apenas lhe dei forma. É tudo o que posso afirmar. Para mim o processo de escrita tem sempre algo de subterrâneo, de inconsciente e na poesia esse é um mecanismo muito evidente, muito pulsional. O que gostaria de sublinhar é que este livro tem um significado tremendo. Foi a resposta poética a uma voz que me habita há muito e que simplesmente tornei audível, materializei em texto. Tinha que o fazer. Sei que o tema é duro e que muito provavelmente não será consensual, mas não podia deixar de o publicar. Julgo que este livro constitui um passo importante no meu caminho. Opera uma mudança. Ter conseguido expressá-lo, dizê-lo é extraordinário. Sinto que fechei um ciclo. O que virá a seguir não sei. Esse é o fascínio do escritor.
2-Qual a ideia que esteve na origem deste livro?
R-Este livro nasceu quase em simultâneo com o primeiro. Constituem, por isso, experiências poéticas que são próximas embora totalmente diferentes. Nasceram ambas do mesmo impulso. A matéria do poema é tudo o que faz parte da vida. Não existem limites. Assim sendo, poderia falar da estrutura narrativa e da temática. Poderia dizer que este livro constitui uma grande metáfora de gente enferma. Poderia falar da memória que existe, em todos estes poemas, de um lugar real, um antigo Sanatório, e dos olhos e vivência de alguém para quem escrevo. Poderia falar da arquitetura mental, poética e física de uma espécie de casa (que foi efetivamente a casa de alguém no verdadeiro sentido da palavra) que, para além da função clínica, tinha igualmente biblioteca, cinema, capela, galerias de cura, sala de refeições e até uma esplanada. Poderia falar da minha própria experiência e da forma como escrevi estes poemas percorrendo corredores, cheiros intensos, feridas, salas, enfermarias, escadarias, jardins exteriores, muita gente e muitos rostos cruzando-se com o meu numa espécie de labirinto. Alguns com véu. Poderia dizer que o vocabulário poético que escolhi tenta construir esse mapa, encontrar uma saída. Uma saída que nunca se encontra a não ser o próprio poema. Poderia falar de muitos outros aspetos, mas nenhum seria suficiente para descrever essa viagem que acontece dentro de nós num processo que tem sempre algo de enigmático, de auto escuta e que pertence a qualquer construção poética ou de escrita. É uma experiência e vivência interior. Será sempre o leitor que irá cumprir o desígnio de qualquer texto, que lhe atribuirá, ou não, um sentido. Borges tem uma frase (que disse no contexto de uma entrevista) de que gosto muito e que é a seguinte: Quando publico um livro esqueço-o. E acrescenta que são os temas que nos procuram e não nós que procuramos os temas. A literatura tem algo de misterioso. Identifico-me completamente com estas palavras.
3-Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
R-Não penso muito no futuro. Publicar dois livros de poesia foi algo que nunca planeei apesar de escrever desde sempre. Foi tudo muito inesperado. Neste momento tenho um terceiro livro de poesia já iniciado e que vou deixar que siga o seu rumo. Porque a poesia é sempre algo que me acontece. De forma intensa. É um processo que não consigo controlar. No entanto, e para se continuar este caminho só isso não chega. Há que investir e fazer o nosso trabalho. Como qualquer outra atividade. O meu grande projeto continua a ser o romance que já iniciei, mas que, para mim, será como entrar num labirinto difícil de percorrer. Sobretudo pelo facto de que o vou escrever para alguém, nomeá-la, resgatar a sua memória. É algo, por razões que não consigo explicar, muito mais difícil do que escrever poesia. Não sei se algum dia o conseguirei concluir, nem sei, sequer, se o chegarei a publicar, mas posso afirmar que dedicarei todo o meu esforço e o meu tempo nessa demanda. Nem que demore o resto da minha vida. Vamos ver.
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Ana Paula Jardim
Enfermaria
Guerra e Paz 11€
Ana Paula Jardim na “Novos Livros” | Entrevistas