Ana Marques Gastão: “Anotação de sonhos feita ao longo de anos”
1-O que representa, no contexto da sua obra, o livro Oníricas?
R-Não digo que Oníricas seja uma ruptura com o meu passado poético – que perfaz, este ano, um quarto de século de publicação –, mas de algum modo, procede a uma incisão, mais ou menos discreta, na poesia do Eu por onde todos os autores passam e aonde tantas vezes regressam. L de Lisboa (Assírio & Alvim, 2015) e a ficção A Mulher sem Pálpebras (Bookbuilders, 2021) anunciavam já outro lugar em que a poesia do mundo, se assim se pode dizer, acaba por se sobrepor, revelando um pensamento mais dirigido sobre o universo, a Natureza, a relação entre seres humanos e entre visível e invisível. A literatura faz-se dos mesmos temas, amor, morte, tempo, memória, linguagem, espiritualidade. A imaginação é que pode trazer algo de novo. Em L de Lisboa, coloquei a cidade no centro do discurso. Ser poeta é isso, ter esse vigor na mão, erguer pedra, tijolo, ser construtor, viajante. N’A Mulher sem Pálpebras, traço o percurso de Libbie, mulher condenada a ver e consciente do seu desaparecimento, que acaba por ser uma ascensão comandada pelo desmantelamento voluntário do seu corpo. O que torna Oníricas um pouco diferente, não é tanto, a meu ver, a temática, mas a forma e o foco. Fixei-me, não no que se vê, mas no que não se consegue dizer ou não pode ser dito, e que, por isso, nos leva a colocar algo no lugar de. As figuras da metamorfose, da metáfora ou da alusão são, por isso, relevantes nos textos.
Apesar de o livro partir da anotação de sonhos feita ao longo de anos, não significa que eu não acredite em projectos práticos de desenvolvimento e de evolução, ou considere a utopia um modo de concepção do futuro, dela resgatando, porém, uma função metódica na análise das sociedades. Talvez a minha vontade, não digo derrotada, nem estática, mas céptica de mudar o mundo, passe pela importância que dei neste livro, não por acaso agora, à experiência interior num tempo mais do «fora» do que do «dentro» (como ciclicamente acontece), ou pelo menos de um grande esvaziamento da vida psíquica. E ao fazê-lo, talvez tenha entrado noutra fase da minha escrita. Até ao fim, podemos sempre mudar algo. O mundo onírico dá indicações não precisas, mas enigmáticas e labirínticas, sobre isso mesmo. Isso interessou-me, interessa-me há muito.
Tomei sempre o sopro, a vibração, a música e a dança do poema como muito importantes, bem como a atenção dada ao sentido e ao silêncio, que não quer dizer exactamente o mesmo que abolição do ruído. Impôs-se muito naturalmente, nestes textos, uma maior leveza, sobretudo por se tornar cada vez mais difícil suportar a violência, seja de que ordem for. Nós/Nudos – 25 poemas sobre imagens de Paula Rego (Gótica, 2004) debruçou-se, de uma forma mais evidente, sobre a temática da impiedade e sobre a incapacidade de tolerar a apropriação do outro. Tentei agora remar contra a maré de outro modo, escrevendo, como diz Nietzsche, com sangue (o sangue é espírito), mas tentando estancá-lo com a dança das palavras, como se, nesse movimento, algum lodo, do que nos atormenta, se pudesse afastar. Somos habitados por monstros, mas também por algum encantamento. Oníricas resulta, por isso, de uma efervescência interior que parte de uma não crença na bondade da maior parte dos seres humanos e de uma fé maior na força poética, no modo que tem de conduzir e abordar o saber inconsciente. A poesia deve-lhe muito e está também perto do sonho. Escrever tornou-se, no meu entendimento, e nesta fase da vida, numa forma mais consciente de acção.
O planeta Terra está, como sabemos, na maior das convulsões. Ultrapassámos uma pandemia, estamos em tempo de guerra e de transformações de ordem socioeconómica e tecnológica muito significativas; as catástrofes naturais sucedem-se, o tempo não é de liberdade, mas do «ainda não», de grande pessimismo A Humanidade diz-se politécnica e multicultural, mas ignora os seus, sobretudo, como sempre, os mais desprotegidos, que nem sequer podem dar-se ao luxo de se sustentar e de evoluir. A informação é de hierarquização injusta e pouco plural. Tudo se repete, repete e repete, a começar pelos nossos actos egoístas ou ilusórios, as nossas obsessões. A uniformização das coisas choca-me imenso, ou o excesso de categorização de tudo.
Talvez se pudesse falar, a propósito dos tempos em que vivemos, de uma indiferença filosófica e de uma quase ausência de filósofos. Quem sabe a barbárie possa trazer mais à frente a inevitabilidade do pensamento. Será que só a dor e a destruição fazem pensar e criar? Será que o ensino e a educação não devem ser repensados, mas por quem? A poesia (e, no sentido mais amplo, a literatura) tornou-se também num terreno um pouco saturado, centrada que ficou no lugar-comum do quotidiano ou na captação de público-leitor, mais avessa a um trabalho rigoroso da linguagem. A fraternidade entre solitários, que anda sempre nas bocas do povo, é algo muito próximo do impossível. Que fazer com o sentimento de injustiça ou de incomunicabilidade? Que fazer com este filme cruel e repetitivo que, diariamente, desfila à nossa frente, conduzindo-nos a uma automatização entediante? Não consigo não agir e o meu modo de o fazer é escrever.
Muitos consideram que o mundo do pensamento, das artes e da literatura é inútil, mas se não pensarmos o mundo, reconstruimo-lo como? Que seria o mundo sem Ética ou sem Arte, que tudo envolve? Ainda acredito no poder da palavra e da invenção. Talvez por isso tenha escolhido trabalhar sobre o inconsciente, sobre o desconhecido. Pelos vistos, a educação pela arte, de que beneficiei em criança (e de que agora se fala como coisa nova), não chegou, mas mudou a minha vida. A literatura pensa o espaço, o tempo, a história, a realidade insondável. Os poemas de Oníricas resultam do susto que a aceleração do ritmo de mudança social e tecnocientífica causa, por mais que se enumerem, e são importantes, as vantagens da evolução tecnológica. Vivemos, porém, numa sociedade vigiada, como num livro ou num filme de ficção científica. A velocidade das coisas é tal que, por vezes, deixamos de estar sintonizados com o que nos singulariza.
Quis, por isso, seguir por outro lado, o do imprevisível, que os sonhos comportam, fazendo-nos viajar pelo lado mais obscuro e misterioso da condição humana. Atraiu-me, neste conjunto de poemas, a organicidade de tudo e a escuta das inflexões íntimas que o inconsciente produz. A verdade é que os poemas são também uma forma mais física de ver a palavra, tão do domínio da Natureza como nós. Escrevemos com o corpo, a ferramenta é a mão: surge do gesto, do movimento, de um esforço enorme, não só intelectual, mas corpóreo. Falei disso em As Palavras Fracturadas (Theya, 2013).
2-Qual a ideia que esteve na origem desta obra?
R-Nem sempre um livro surge assim, de uma ideia. Não é algo tão determinado, pelo menos para mim. Prefiro esperar que algo venha ter comigo. Começa, tantas vezes, por ser uma deslocação de algo, uma onda que nos move para um lugar desconhecido, quebrando a inércia como algo que nos invade e nos leva a pensar: «Agora tenho de escrever sobre isto». Mas isto o quê? Tudo se transforma depois no papel ou no ecrã. O que parece ser uma coisa, metamorfoseia-se noutra. Não me sinto bem dona de mim própria quando estou em fase de escrita de um livro, há como que uma ausência de tempo. Só quando isso acontece, a poesia nasce. Por vezes, o esquecimento sobrepõe-se à memória. Escreve-se nesse vácuo. Parece um parêntesis da vida, que é vida também. Em Oníricas, quis transformar os sonhos, que me aconteceram ao longo de décadas, em algo que tivesse alguma unidade, juntando-os à minha tentativa de entendimento do mundo. Eram muitos, tive de excluir imensos. Já estavam transcritos em pequenos cadernos que fui trazendo de várias cidades, alguns com data, outros não: uns contavam uma história, outros surgiam como enigmas, adivinhas, jogos de crianças, e ainda outros como imagens com cores ou elementos da Natureza como o mar, ou arbóreos a saírem de dentro de árvores em lugares específicos da minha vida. Num deles, apercebi-me, na linha de baixo do sonho (como a de uma pauta), do que parecia a ser uma evacuação de monjas brancas de uma gruta. Vi-as entrar depois numa nave, ou algo parecido. Por vezes, foi-me dado ver apenas um símbolo, um ícone, ou uma alusão a algo.
A espada neónica que surge em «Viagem», parecia desenhada com luz de néon. Não se assemelhava a uma lâmpada. Tive a sensação de ver uma grande luz, uma corrente contínua que só podia trazer alegria, não sem partir pedra. Era uma espada, a espada corta, separa, alude à virtude, à bravura, mas também à mudança. Tem uma simbologia dupla: destrói ou serve a paz, a do mundo interior. Tudo é leitura, porém. Eu fiz a minha e transfigurei-a. Atrevi-me, não a decifrar sonhos, ou a trabalhá-los, por exemplo, à maneira de Freud, Jung ou Lacan, mas a transformá-los em algo outro. Não que a questão do método não tenha sido importante. Eram tantas as perguntas que os sonhos colocavam que tentei ir ao «extremo do possível», como escreveu Bataille. Por isso no poema «Meteorito» falo do novelo, do fio de Ariadne, sem sequer aludir ao mito.
Durante um tempo, fixei-me no mundo do inconsciente, extremamente criativo, nessa descida ao mundo das profundezas. O consciente é bem mais crítico e dissuasor, muito mais opressivo. Fazer a ponte entre o mistério do sono/sonho e a escrita permite que entremos num oceano ilimitado e fiquemos mais próximos da ideia da liberdade, mas basta parar de escrever um pouco, e tudo se vai. É um pouco a sensação que temos quando uma peça musical termina ou um filme. Sobretudo se são excepcionais e nos retiram da ordem do tempo. Depois vem a luta com a memória, e não é que ela se apaga também? Vai-se apagando…. Passa-se de imediato do hiperbólico para o mínimo. Somos o quê? Poeira, talvez poeira de estrelas, mas poeira. A consciência da efemeridade levou-me a pensar na questão do desaparecimento, que se tornou insistente. Não é medo de morrer, mas saber que vamos desaparecer um dia. Tudo desaparece rapidamente e passa a ser recordação a diluir tão depressa como um fósforo se queima.
Durante o processo de escrita de Oníricas, talvez por isso mesmo, foram irrompendo nos poemas quase-desenhos, com muito desse mundo além-aqui. Não foram feitos com o lápis ou a caneta, mas com a mão, o rato e o teclado. Até me surpreendi, eu que não sei desenhar, mas foi uma necessidade que surgiu no papel, algo fragmentado, como se fosse uma anotação, um comentário, um símbolo, mas de dentro, de dentro do texto. Quando comecei a transcrever as notas para o computador, percebi que se tratava de um diálogo, não ecfrástico, mas físico. As linhas e os traços passaram a mover-se quase sozinhos, o que me alegrou, como se pertencessem à essência do poético. Procurei então programas de desenho digital, softwares simples, e algo começou a nascer a partir dos mais básicos conceitos de geometria. São pequenos arabescos, por vezes irónicos ou infantis, que aludem a um todo cósmico ao qual pertencemos. Ou melhor, dir-se-iam pequenas transfigurações geométricas que salvaram o livro da dramatização.
3-Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
R-Poemas, contos, por vezes, crítica literária. Aguardo a publicação de um livro de ensaios sobre a obra de Ana Hatherly pela Documenta. E nunca se sabe o que vem a seguir. É sempre um mistério, a escrita.
__________
Ana Marques Gastão
Oníricas
Assírio e Alvim 12,20€