Ana França: “É muito interessante ver o que cada pessoa faz com o destino geográfico que lhe calhou”
1-Qual a ideia que esteve na origem deste seu livro “Lampedusa: Ir e Não Chegar”?
R-A primeira vez que fui a Lampedusa, em 2019, achei que a ilha, em si, era uma história. Por muitas razões: é pequena, é árida, é desconhecida das massas turísticas apesar de ser uma zona turística, todos os habitantes tiveram já contacto com muitas, muitas situações extremas de emergência humanitária, o que não é o caso para a maioria dos cidadãos europeus. Quase toda a gente ali tem uma relação muito forte com o que é o fenómeno migratório, um grande conhecimento sobre o tema, nem todos acham que Lampedusa deve ser um porto de chegada “aberto”, mas a vida da ilha está totalmente ligada à sua posição geográfica, e essa condição geográfica aconteceu-lhes, não é algo que os lampedusanos tenham escolhido. É muito interessante ver o que cada pessoa faz com o destino geográfico que lhe calhou.
2-As histórias que conta no seu livro são, em primeiro lugar, memórias de uma (ou muitas) tragédias: o que mais a impressionou nesta realidade?
R-Impressiona-me que as pessoas continuem a seguir a rota do deserto. Percebi depois, e continuo a aperceber-me, que há um grande desconhecimento sobre o que realmente se passa no deserto do Chade, da Líbia. Os guias, passadores, contrabandistas, como queiramos chamar (tráfico de humanos é diferente), nem sempre confessam os horrores pelos quais muitos migrantes vão passar, porque talvez se o dissessem ninguém lhes pagasse a viagem. No deserto as pessoas são, no mínimo, roubadas, e ficam à mercê de senhores de escravos para comer, trabalhando sob todas as condições até reaver a liberdade, que nunca se sabe quando vem. No pior caso, são torturadas enquanto os carrascos ligam às família, para que, ao ouvi-las gritar, mandem mais dinheiro. É uma travessia horrível, e assusta-me pensar o que é que pode ser tão mau assim nos seus países de origem que os faça considerar tal saída. Uma boa parte é desconhecimento, e esse trabalho de informação devia ser um foco das organizações no terreno.
3-A comunicação social centra-se (e bem) nas pessoas que tentam chegar à ilha siciliana e à Europa. Tendo lá estado, como é que sentiu que esta realidade impacta as vidas dos habitantes de Lampedusa?
R-Bom, já respondi um pouco lá em cima. Por um lado, algumas pessoas admitem que a ilha se tornou mais conhecida, e por isso mais turística, por causa dos migrantes, e que é por causa deles que tantas ONGs, tantos investigadores, jornalistas e também muita polícia procura alojamento na ilha, o que acaba por ajudar a aguentar a economia nos meses mais fracos. Mas, por outro, há também quem se pergunte por que razão há tanta preocupação com os migrantes quando ainda hoje faltam médicos obstetras em Lampedusa, não há um laboratório de análises sanguíneas, não há forma de tratar doenças urgentes, diagnóstico de coisas sérias demora meses e meses, é preciso ir a Palermo para quase tudo, os miúdos só estudam lá até ao 9º ano, depois têm de sair de casa, para a Sicília, obviamente impedido muitos de prosseguir os estudos. Ao mesmo tempo, se algumas coisas mudaram na ilha é porque os Lampedusa está sob o foco dos meios de comunicação social e a pressão mediática levou a que Roma tentasse melhorar algumas coisas na ilha.
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Ana França
Lampedusa: Ir e Não Chegar
Tinta-da-China 16,90€