Ana França: “Acho difícil ser bom jornalista sem se ser também uma pessoa com compaixão pelo sofrimento do próximo”

1-Qual a ideia que esteve na origem deste seu novo livro «Ali Está Taras Shevchenko Com Um Tiro Na Cabeça»?
R- Bom, não é novo. Eu só escrevi este, e até este foi escrito tendo por base o que já tinha saído no jornal Expresso. A ideia foi apresentar ao leitor, ou tentar, uma visão mais intimista, diária, lá está, do que se passa quando um jornalista vai cobrir um evento durante vários dias, não só a guerra. Neste caso é a guerra da Ucrânia mas há outros eventos que poderiam justificar este tipo de cobertura, por exemplo a estadia numa ilha onde todos os dias, durante meio ano, desembarcasse um barco de migrantes. Além disso, os textos jornalísticos não podem conter qualquer opinião, nem as minhas dúvidas quanto à forma mais correta de cobrir a história, nem as minhas considerações sobre o que está bem ou mal com as redes sociais ou com as redações. Achei que um diário poderia ser uma forma interessante de expor dúvidas e suscitar discussões que me iam surgindo à medida que me deparava com mais uma dificuldade nova. Por exemplo, se só há luz até as 3:30 no inverno como é que o meu fotógrafo pode fazer um bom trabalho? Mesmo que eu tenha uma grande história feita à noite, no dia a seguir temos de “perder tempo” para o fotógrafo ir tirar uma boa fotografia com luz do sol. Outro exemplo: como falar com pessoas extremamente perturbadas pelos eventos que testemunharam? Deve fazer-se isso, de todo?

2-Estar dentro de um teatro de guerra e continuar a ser jornalista: é tão difícil quanto parece ou consegue-se filtrar e criar a distância necessária para escrever uma reportagem objectiva?
R-Acho difícil ser bom jornalista sem se ser também uma pessoa com compaixão pelo sofrimento do próximo. Aliás, custa-me a crer que pessoas frias, indiferentes, desligadas possam ser bons jornalistas.
É preciso, antes de qualquer curso de escrita ou de vídeo ou fotografia, realmente ter interesse no momento da vida que estamos a registar. E esse interesse, para mim, é o que garante que me mantenho objetiva na medida do possível, porque também tenho interesse e curiosidade pelo outro lado.
Infelizmente, não consegui nunca a garantia que, se fosse para a Rússia, estaria em segurança, e por isso não posso saber realmente o que eles pensam. Posso, contudo, ouvir – e citar! – todos os que expressem ceticismo ou mesmo exasperação em relação, por exemplo, ao continuo envio de armas da NATO para o teatro de guerra.

3-Este livro assume a forma de um diário: qual a memória mais forte e significativa que ficou da sua experiência nesta guerra?
R-Várias. Sem dúvida que aquela senhora, a Galina, que conheci em Irpin, que perdeu o pai e o filho com a distância de seis dias, da mesma forma, em carros que explodiram ao passar por cima de minas, me marcou imenso. Mas também há momentos em que jantei com o tradutor, o Andrii, em que ri muito, em que contámos piadas de humor o mais negro possível. O que para mim mais me impressiona, sempre, é o quanto os ucranianos se riem de coisas, no geral, e cozinham e falam dos seus gatos e dos seus netos e dos cozinhados que querem fazer quando tiverem gás outra vez.
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Ana França
Ali está Taras Shevchenko com um Tiro na Cabeça
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