Ana Cristina Pereira: “Reconhecer o contributo e homenagear mulheres comuns”
1-Qual a ideia que esteve na origem do livro “Mulheres da minha ilha, mulheres do meu país”?
R-A ideia é reconhecer o contributo e homenagear mulheres comuns, como a minha mãe, que combinava o trabalho doméstico com o trabalho agrícola, fez tudo o que estava ao seu alcance para que eu ou a minha irmã tivéssemos condições para estudar, ter uma profissão, não depender de um homem. Há um silêncio sobre o papel das mulheres que se estendeu por século e séculos e que está a ser rasgado. Cada vez se escreve mais sobre mulheres que se destacaram ou destacam, mulheres que foram ou vão à frente, a abrir caminho. Isso é fundamental (e o livro não deixa de contar algumas dessas histórias, como a de Guida Vieira que liderou o Sindicato Livre dos Trabalhadores da Indústria dos Bordados), mas não chega. As heroínas tendem a não ser representativas da condição feminina em cada época.
Ainda quis andar pelo país todo, como a Maria Lamas fez entre 1948 e 1950 para escrever as reportagens que deram origem ao seu livro “As mulheres do meu país”. Enviada pelo Público para a Madeira para fazer uma série de reportagens a propósito dos 600 anos de presença humana, o arquipélago impôs-se. É um lugar de fronteira. Garante diversidade e permite uma visão de conjunto.
Em suma, no correr dos últimos 80 anos, o livro aborda a transformação do país impulsionada pelo 25 de Abril de 1974 a partir da história de mulheres comuns (e extraordinárias) ancoradas numa região periférica. Puxar a periferia para o centro é algo que também me interessa enquanto jornalista e enquanto cidadã.
2-De que forma estas histórias são um retrato fiel das mulheres portuguesas?
R-Cada pessoa é única. Terá é um percurso com traços com os quais muitas outras pessoas se podem rever. O livro conta histórias de mulheres de várias gerações, de diferentes classes sociais, com distintos níveis de escolaridade e experiências profissionais muito diversas. Embora a Madeira lhes sirva de âncora, nem todas lá moram. Há mulheres que vivem, por exemplo, em Lisboa, no Porto, em Berlim ou Londres. A história delas é entrelaçada com a história da região e com a história das mulheres em Portugal e , nalguns casos, ultrapassa essa fronteira.
3-Baseado na realidade que observou e ouviu, duas perguntas: ao fim de 50 anos, o que persiste ainda hoje e o que já mudou?
R-O quadro legal mudou radicalmente, mas muito continua por fazer sobretudo ao nível das mentalidades. As mulheres hoje, em Portugal, não estão proibidas por lei de estudar área alguma nem de desempenhar profissão alguma, mas a segregação profissional por sexos persiste. Cada vez mais homens assumem responsabilidades com a casa e com a família, as políticas públicas até têm incentivado essa mudança, mas as mulheres continuam a desempenhar o grosso dessas tarefas. Esses dois aspectos têm consequências evidentes, por exemplo, no valor dos salários e das pensões. A violência contra as mulheres foi criminalizada, mas ainda é fortíssima em todas as idades e de várias formas. E há desafios específicos relacionados com a classe social, a idade, a nacionalidade, a cor da pele, a etnia, a expressão de género, a orientação sexual. No livro vemos, por exemplo, como Rute Fernandes, uma mulher lésbica, se confrontou com a dificuldade das autoridades em reconhecer que o que estava a acontecer dentro da sua casa era um crime de violência doméstica.
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Ana Pereira
Mulheres da Minha Ilha, Mulheres do Meu País
Bertrand 16,60€