Alexandra Malheiro: “A história que os nossos filhos e netos estudarão nas escolas”
1-Qual a ideia que esteve na origem deste livro “Da Pandemia ao Pandemónio”?
R- Vivemos “tempos interessantes”, faço referência a esta espécie de praga, logo no início do livro. E estes “tempos interessantes” que nos são dados viver serão a história que os nossos filhos e netos estudarão nas escolas sem mesmo compreenderem como serão, eles próprios, moldados por esta experiência, mesmo os que nascerão depois desta época, tal como aconteceu connosco face a outros eventos que marcaram a história que nos antecedeu. Assim surgiu-me quase como um imperativo moral o escrever sobre isto que estou a viver. Sobre aquilo que em quase meio século de vida e um quarto de século de prática médica nunca me ocorreu que pudesse acontecer e a um nível absolutamente global. A erosão da afectividade, da fisicalidade, o medo do outro, do toque. Tudo isto são novas situações que nos colocam numa posição de imensa fragilidade, onde perdemos os esteios, a segurança física e a afectiva onde costumávamos escudar-nos. Senti que tinha de deixar este testemunho, até como forma de alinhar as minhas próprias ideias. É, talvez, uma forma algo “Bukowskiana” de escrever contra a loucura.
2-Ao contrário de outros livros sobre a pandemia, o seu coloca no centro de tudo as pessoas (pacientes, médicos, enfermeiros, famílias) e não apenas os números. O seu olhar de médica que esteve na “frente de batalha” influenciou o ângulo que escolheu?
R- Sim, claramente. Até ver tinha apenas publicado poesia e um livro de crónicas, tudo muito longe de temáticas médicas mas o meu olhar é sempre o mesmo, de quem cuida. Quero com isto dizer que isso de “ser médica” é uma coisa minha, que se impõe em tudo o que faço como a própria decisão de escolher sê-lo se impôs em mim desde muito cedo. O que quer dizer que todos os meus anteriores livros, nada tendo a ver com Medicina, sempre resultaram deste mesmo olhar, deste mesmo lugar de onde vejo o mundo. Aqui com mais intensidade já que toda a temática gira em torno de uma doença, doença essa que tive de aprender a gerir, do ponto de vista clínico, humano, na relação com os doentes, com a família, enfim, com o mundo. Daí a minha preocupação em colocar no centro a única coisa que verdadeiramente interessa – as pessoas. São sempre a pessoas que interessam e, na minha vivência profissional, sou sobretudo “clínica”, cuja etimologia nos leva para o que se “inclina sobre o leito”, o que se inclina para o doente, a pessoa.
3-Finalmente, o livro estruturalmente, organiza-se entre dois tempos: A.C. e D.C. (Antes de depois do COVID): do seu ponto de vista, de todo este pandemónio o que fica para o futuro?
R- Esta cisão de tempo creio que perdurará, pelo menos na nossa geração, dos que têm memória antes e depois do covid. O que fica julgo que é um certo desorganizar dos nossos afectos, uma certa rigidez e maior solidão. Espero que o tempo venha a minorar esses efeitos. Ao contrário do que muitos esperavam não sairemos desta pandemia mais solidários, saíremos antes mais solitários, provavelmente mais independentes e capazes de viver sozinhos mas mais pobres afectivamente. Talvez como coisa positiva fique um certo deixar a nu a falta de substrato de “achistas” e “conspiracionistas”, o abalar de alguns populismos, a queda de líderes como Trump, creio que por aí se encontra alguma vantagem. Creio que a pandemia nos mostrou que é pela ciência que vamos e que apenas por aí nos poderemos salvar. Isso e o Amor que é, em última análise, sempre salvífico.
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Alexandra Malheiro
Da Pandemia ao Pandemónio
Lisbon Books 12€