Ah!, a democracia…
São quase 900 páginas dedicadas à história e à problemática da democracia que confirmam a importância do tema, sobretudo nos dias que correm. A perplexidade é geral, pela evolução das democracias, um pouco por todo o mundo, mas particularmente face aos acontecimentos mais recentes. “A primeira vez que vi imagens do desmantelamento do Muro de Berlim, tive a sensação de que a história estava a seguir, ao mesmo tempo, em duas direcções que eram fundamentalmente diferentes: rumo à democracia e rumo a uma dominação misturada de sangue”, numa citação de Yang Lian, de 2004, feita a abrir o capítulo «Memórias do futuro».
A história e o conceito, desde logo. Claro que é de uso remeter a democracia para a organização política ateniense, que de resto coroou no seu esplendor. Não é por acaso que a propósito desta crise que fustiga a Europa e martiriza os gregos (e a nós, entre outros…), já tenha havido quem lembrasse a matriz da democracia europeia – Atenas, pois claro. Mas John Keane não se fica por aí e leva-nos para trás no tempo, às “antigas assembleias do Leste”. Esmiúça uma viagem comercial de Wen-Amon, que por volta de 1100 a.C. viajou de Tebas até ao porto fenício de Biblos, 700 quilómetros a leste de Atenas. O objectivo era comprar madeira da melhor qualidade.
Estava a madeira de cedro já preparada e estivada quando uma frota hostil, da vizinha Theker, aportou a Biblos e questionou o carregamento. Face à iminência de rebentamento de um tumulto, certamente fatal para os tripulantes de Wen-Amon, foi requerida a intervenção do príncipe de Biblos, Zakar-Ba ‘ al. Perante o diferendo, apaziguou os ânimos e anunciou para a manhã seguinte uma decisão. “Quando foi chegada a manhã, ele mandou convocar o seu mw- ‘ dwt, e ficou no seu meio e disse aos de Theker: ‘Vós porque viestes?’”.
O madeireiro recebeu carta verde e zarpou com o seu carregamento, assim decidiu o mw- ‘ dwt, termo originário de uma palavra semítica que significava “conselho” e em alguns passos bíblicos menciona os “notáveis da congregação”, os “homens de renome” que se reúnem “na assembleia”.
E é Keane quem pergunta: “O que é que tudo isto tem a ver com a história da democracia?” A resposta é: revela “a existência de um regime de autogoverno, a funcionar em pleno uns bons quinhentos anos antes de Atenas começar a fazer as suas experiências com a democracia”. Biblos, na República do Líbano, era, à época, uma pequena mas florescente cidade-estado marítima.
Com isto, é certo que se acrescenta um ponto às origens da democracia, mas tal não retira a centralidade de Atenas na consolidação e propagação do conceito. O edifício democrático, a sua articulação com a sociedade grega, o funcionamento da estrutura são aqui bem detalhados, não fugindo às dificuldades que já nessa altura se adivinhavam, até contradições como a aceitação da escravatura.
O cancro da guerra, a cegueira do domínio, a partir de certa altura obcecou os atenienses. “Tornava-se impossível distinguir cidadania e serviço militar”, sublinha o autor desta obra. E, por fim, torna-se óbvio que a entente entre a democracia e a força armada acabou por ser fatal para Atenas e no glorioso século V imperial chegou a constituir causa de restrições às liberdades fundamentais na metrópole. Em 359 a.C. a ascensão de Filipe II ao poder, na Macedónia, marcou o destino de Atenas, como acontecia a muitos outros seus vizinhos.
Assim, Filipe II acabou por esmagar a democracia ateniense. Várias tentativas democratas de recuperar o poder falharam, mais exaltaram a força do opressor que 260 a.C. acabou com as ilusões. A democracia acabava, numa agonia “lenta e dolorosa”.
Depois foi o Império Romano, com o alastramento a Bizâncio, que não salvou do esquecimento o período fulgurante da democracia grega. Nem quando “o Renascimento do século XIV veio redescobrir a cultura e as instituições políticas da antiguidade grega e romana” a situação se inverteu; pois muitos comentadores preferiram as repúblicas armadas “por acharem que eram melhores do que democracia quando se tratava de manter a lei e a ordem ou de fomentar a boa governação”. Um preconceito que persistiu até bem tarde, nos tempos modernos.
Enquanto Maquiavel discorria sobre os malefícios da democracia (“desordem licenciosa”), mesmo os primeiros dicionários franceses e ingleses “deram um tratamento frio à democracia”. Os desta geração, mas “nas longínquas costas do Atlântico”, praticamente todos os revolucionários americanos, afinavam pelo mesmo diapasão, contrariando, segundo Keane, a crença popular de que eles seriam os pais fundadores da democracia no seu país e recusando-lhes o estatuto de fundadores da moderna democracia liberal, ao contrário da tese de Francis Fukuyama.
Depois, no final do século XVIII, as “coisas pareciam tremidas para a democracia”, que tinha desaparecido como ideal – e alerta o autor que “o espírito, a linguagem e as instituições da democracia não gozam, de facto, de nenhum estatuto histórico privilegiado”. Até que foi ressuscitada, garante o autor, pela mão de vários historiadores europeus: entre outros, o francês Jean Victor Duruy, o alemão Ernst Curtius, e o inglês George Grote – para que conste. Mas tal não satisfaria, por exemplo, Karl Marx, na convicção de que “a democracia mais não era do que um estratagema (…) concebido para garantir que os banqueiros conseguissem salvaguardar os seus bens em face de governos vorazes”.
A partir daqui, no entanto, “lenta, mas inexoravelmente, a convicção de que tudo começou em Atenas tornou-se crença ortodoxa da intelectualidade, como que um mantra político que, nos nossos dias, sempre convém ter à mão para fazer as vezes de estratagema de marketing”.
O percurso da democracia está lançado, como se percebe, atravessa a História, cruza países. Anda pelos continentes, como a Europa, mora em países como a Índia, chega aos dias de hoje com a chamada “rua árabe». “Durante a primeira década do século XXI a velha euforia em volta dos ideais e instituições democráticos começou a esbater-se. Milhões de pessoas por todo o mundo começaram a sentir que havia problemas na casa da democracia”, constata John Keane.
Parecia que “na loja não havia mais escolha, só democracia”, assinala. O caso da África do Sul alimentou esse ideal, tal como em “inteiras regiões onde as experiências e os ideais democráticos tinham passado um mau bocado”. “O mundo de língua árabe também não era excepção a essa tendência. Era aí que se concentrava a maior densidade de ditaduras à face da terra, quase todas apoiadas pelas democracias ocidentais famintas de carbono”, explica o autor.
Pois, e há a China, e este e aquele país mais. Um mundo entre a vida e a morte da democracia. Salve-se quem puder?
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John Keane
Vida e morte da democracia
Edições 70, 44,41€
A história e o conceito, desde logo. Claro que é de uso remeter a democracia para a organização política ateniense, que de resto coroou no seu esplendor. Não é por acaso que a propósito desta crise que fustiga a Europa e martiriza os gregos (e a nós, entre outros…), já tenha havido quem lembrasse a matriz da democracia europeia – Atenas, pois claro. Mas John Keane não se fica por aí e leva-nos para trás no tempo, às “antigas assembleias do Leste”. Esmiúça uma viagem comercial de Wen-Amon, que por volta de 1100 a.C. viajou de Tebas até ao porto fenício de Biblos, 700 quilómetros a leste de Atenas. O objectivo era comprar madeira da melhor qualidade.
Estava a madeira de cedro já preparada e estivada quando uma frota hostil, da vizinha Theker, aportou a Biblos e questionou o carregamento. Face à iminência de rebentamento de um tumulto, certamente fatal para os tripulantes de Wen-Amon, foi requerida a intervenção do príncipe de Biblos, Zakar-Ba ‘ al. Perante o diferendo, apaziguou os ânimos e anunciou para a manhã seguinte uma decisão. “Quando foi chegada a manhã, ele mandou convocar o seu mw- ‘ dwt, e ficou no seu meio e disse aos de Theker: ‘Vós porque viestes?’”.
O madeireiro recebeu carta verde e zarpou com o seu carregamento, assim decidiu o mw- ‘ dwt, termo originário de uma palavra semítica que significava “conselho” e em alguns passos bíblicos menciona os “notáveis da congregação”, os “homens de renome” que se reúnem “na assembleia”.
E é Keane quem pergunta: “O que é que tudo isto tem a ver com a história da democracia?” A resposta é: revela “a existência de um regime de autogoverno, a funcionar em pleno uns bons quinhentos anos antes de Atenas começar a fazer as suas experiências com a democracia”. Biblos, na República do Líbano, era, à época, uma pequena mas florescente cidade-estado marítima.
Com isto, é certo que se acrescenta um ponto às origens da democracia, mas tal não retira a centralidade de Atenas na consolidação e propagação do conceito. O edifício democrático, a sua articulação com a sociedade grega, o funcionamento da estrutura são aqui bem detalhados, não fugindo às dificuldades que já nessa altura se adivinhavam, até contradições como a aceitação da escravatura.
O cancro da guerra, a cegueira do domínio, a partir de certa altura obcecou os atenienses. “Tornava-se impossível distinguir cidadania e serviço militar”, sublinha o autor desta obra. E, por fim, torna-se óbvio que a entente entre a democracia e a força armada acabou por ser fatal para Atenas e no glorioso século V imperial chegou a constituir causa de restrições às liberdades fundamentais na metrópole. Em 359 a.C. a ascensão de Filipe II ao poder, na Macedónia, marcou o destino de Atenas, como acontecia a muitos outros seus vizinhos.
Assim, Filipe II acabou por esmagar a democracia ateniense. Várias tentativas democratas de recuperar o poder falharam, mais exaltaram a força do opressor que 260 a.C. acabou com as ilusões. A democracia acabava, numa agonia “lenta e dolorosa”.
Depois foi o Império Romano, com o alastramento a Bizâncio, que não salvou do esquecimento o período fulgurante da democracia grega. Nem quando “o Renascimento do século XIV veio redescobrir a cultura e as instituições políticas da antiguidade grega e romana” a situação se inverteu; pois muitos comentadores preferiram as repúblicas armadas “por acharem que eram melhores do que democracia quando se tratava de manter a lei e a ordem ou de fomentar a boa governação”. Um preconceito que persistiu até bem tarde, nos tempos modernos.
Enquanto Maquiavel discorria sobre os malefícios da democracia (“desordem licenciosa”), mesmo os primeiros dicionários franceses e ingleses “deram um tratamento frio à democracia”. Os desta geração, mas “nas longínquas costas do Atlântico”, praticamente todos os revolucionários americanos, afinavam pelo mesmo diapasão, contrariando, segundo Keane, a crença popular de que eles seriam os pais fundadores da democracia no seu país e recusando-lhes o estatuto de fundadores da moderna democracia liberal, ao contrário da tese de Francis Fukuyama.
Depois, no final do século XVIII, as “coisas pareciam tremidas para a democracia”, que tinha desaparecido como ideal – e alerta o autor que “o espírito, a linguagem e as instituições da democracia não gozam, de facto, de nenhum estatuto histórico privilegiado”. Até que foi ressuscitada, garante o autor, pela mão de vários historiadores europeus: entre outros, o francês Jean Victor Duruy, o alemão Ernst Curtius, e o inglês George Grote – para que conste. Mas tal não satisfaria, por exemplo, Karl Marx, na convicção de que “a democracia mais não era do que um estratagema (…) concebido para garantir que os banqueiros conseguissem salvaguardar os seus bens em face de governos vorazes”.
A partir daqui, no entanto, “lenta, mas inexoravelmente, a convicção de que tudo começou em Atenas tornou-se crença ortodoxa da intelectualidade, como que um mantra político que, nos nossos dias, sempre convém ter à mão para fazer as vezes de estratagema de marketing”.
O percurso da democracia está lançado, como se percebe, atravessa a História, cruza países. Anda pelos continentes, como a Europa, mora em países como a Índia, chega aos dias de hoje com a chamada “rua árabe». “Durante a primeira década do século XXI a velha euforia em volta dos ideais e instituições democráticos começou a esbater-se. Milhões de pessoas por todo o mundo começaram a sentir que havia problemas na casa da democracia”, constata John Keane.
Parecia que “na loja não havia mais escolha, só democracia”, assinala. O caso da África do Sul alimentou esse ideal, tal como em “inteiras regiões onde as experiências e os ideais democráticos tinham passado um mau bocado”. “O mundo de língua árabe também não era excepção a essa tendência. Era aí que se concentrava a maior densidade de ditaduras à face da terra, quase todas apoiadas pelas democracias ocidentais famintas de carbono”, explica o autor.
Pois, e há a China, e este e aquele país mais. Um mundo entre a vida e a morte da democracia. Salve-se quem puder?
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John Keane
Vida e morte da democracia
Edições 70, 44,41€