Agualusa: O primeiro parágrafo agarra-nos sem piedade

CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha

Um livro sobre a riqueza da nossa língua nas suas muitas variantes (ainda bem que as há, a propósito de um tal acordo), palavras escondidas e palavras novas, procuradas como se de um mistério se tratasse, até ao início de tudo: a linguagem dos pássaros.
O primeiro parágrafo agarra-nos sem piedade: “As palavras, como os seres vivos, nascem de vocábulos anteriores, desenvolvem-se e fatalmente morrem. As mais afortunadas reproduzem-se. Há-as de índole agreste, cuja simples presença fere e degrada, e outras que de tão amoráveis tudo à sua volta suavizam. Estas iluminam, aquelas confundem. Umas são selvagens, irascíveis, cheiram mal dos pés, fungam e cospem no chão. Outras, logo ao lado, parecem altivas e delicadas orquídeas.”
O professor e a aluna numa busca pelo novo que confirme o antigo, por milagres que “acontecem a cada segundo. Os melhores costumam ser discretos. Os grandes são secretos.”
As palavras são sensuais como as mulheres, se não estivermos em guarda somos arrebatados “uma mulher muito bonita é um desvario cruel da natureza.” “As mulheres muito bonitas desorganizam os sistemas sociais. Sou um velho anarquista. Aprendi há muito que uma mulher bonita não se distingue de uma bomba – no meu tempo, aliás, eram sinónimos — a não ser pela natureza do impacto.”
Um romance com Portugal, África, Brasil, terras da língua portuguesa, algumas, como Luanda, onde “A realidade não se distingue do sonho.” E o futuro do mundo será necessariamente uma mistura de todos, alegre e esfuziante, como diz Moisés da Conceição “O nosso destino é o de nos engolirmos uns aos outros.”
A palavra “desamparinho” que devia existir em todo o lado e vem do crioulo de Cabo-Verde para dar nome ao lusco-fusco do fim de tarde.
O amor aos locais altos, às varandas que deixam pensar: “Pensadouros – assim as chamava meu pai. Aprendi com ele a amá-las, bem como a alpendres, miradouros, lugares elevados de uma forma geral.”
Os nomes que damos uns aos outros, a diferença entre os países, “em Portugal há muito mais ratos que leões”.
Uma história deliciosa de procura e descoberta em que “só a brincadeira merece ser levada a sério”, assim na vida.
E ainda a correspondência de Camilo com o famigerado Zé do Telhado (como diria o Palma), em que “a transição de herói para bandido foi rápida, confirmando a minha suspeita de que a natureza de ambos pouco difere.”
A certeza de que “nenhuma guerra liberta” e que as contas com o passado têm de ser feitas a bem, porque isso da “pátria é um mistério íntimo.”
E assim, como o neto de Aristófanes na “breve refutação da morte”, “aprendi a amar as trovoadas.”
E a pergunta de arrepiar: “quantas lembranças perdemos por segundo?”
O melhor é aproveitar. Gostei muito.
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José Eduardo Agualusa
Milagrário Pessoal
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