Afonso Cruz e o vício dos livros
CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha
Apetece dizer “Bem-vindo de volta, meu caro!” Há autores assim. Em lugar de publicarem um livro todos os meses, obrigam-nos a esperar eternidades pelo próximo, como se o tempo estivesse sob a nossa jurisdição. Não está, Afonso! Não está. Por isso “O Vício dos Livros” e a ressaca quando não os temos. Todos nós, leitores, somos autores em potencial, gostamos de pensar que assim seja, como a epígrafe de Christian Bobin: “Não há nenhuma diferença entre a leitura e a escrita. Quem lê é autor daquilo que lê.”
Os “livros que ficam perdidos nas estantes” até que um dia lá chegamos, e damos com notas de “esquifobéticos” em Olinda. Quando eu era miúdo dizia escaganifobético das coisas estranhas. Alguns textos ouvi da boca do próprio autor no Teatro do Campo Alegre, aqui no Porto, em plena pandemia.
“As personagens dos livros que lemos são o meio de transporte para o que não somos, ou melhor, para o que somos sem ser”, ou o ser que somos sem saber e, muito mais do que isso, o que poderíamos e quem sabe um dia…
As ilustrações são do próprio e bonitas, a morte gosta de ler, segundo Gabriela Cabal, e ninguém morre se estiver a ler um livro porque “a morte também é leitora” e fica atrás de nós a apreciar com o seu bafo na nossa nuca. Sendo assim, serei imortal! Há mesmo um “estudo de Yale” a corroborar este “efeito Xerazade”.
E a propósito do presente momento, há que dizer que “é muito difícil, senão impossível, explicar a um néscio a importância da cultura, pois ele não tem cultura para perceber a falta dela.”
Sigo em frente para uma frase quase idêntica, não igual, mas da beleza. Sim, da beleza se trata “quando temos dois pães, há que trocar um deles por uma flor.” Quanto aos poetas evitarem guerras, tenho dúvidas. Muitas vezes cantam as próprias guerras, mesmo aquele que disse “se fosse realmente um poeta, teria podido evitar a Segunda Guerra Mundial”, mas os néscios não deixam, mesmo sabendo nós que “só quando nos encontramos no outro nos compreendemos.”
Fiquei a conhecer a fabulosa Rua Al-Mutanabbi, “o terceiro pulmão de Bagdade, onde os poetas se encontram e os livros se espalham no chão e nem as bombas impedem isto porque há coisas e pessoas e ideias que sobrevivem às bombas e honram os mortos e os livros e as ideias que as bombas julgavam ter destruído.
Mas a leitura sempre, a loucura da leitura que “deve resultar numa transformação e um leitor deverá saber que aquele que abre um livro não é a mesma pessoa que o fecha”, com a frase de Kafka “se um livro não nos magoa e esfaqueia não tem interesse.” Como o rio de Heráclito ou a ideia que já tive para um livro que matasse quem lhe chegasse ao fim.
Ainda o que se esconde nas expressões quotidianas (detesto esta palavra), como na Guiné “que, em vez de nos saudarem pela manhã com um ‘bom dia’, nos perguntam como amanhecemos.”
Fico descansado por saber que os livros “podem esperar décadas ou séculos por um leitor” e que “uma pessoa interessada é uma pessoa um pouco melhor, um progenitor melhor, um parceiro, um vizinho e colega melhor do que uma pessoa não curiosa. Um amante melhor também.”
E para acabar, é bom saber duas coisas: que “a poesia inspira realidade e expira onirismo” e que “quando penso em todos os livros que tenho para ler, tenho a certeza de ainda ser feliz.”
Que bom isto tudo.
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Afonso Cruz
O Vício dos Livros
Companhia das Letras 15,50€