Afonso Cruz: Absolutamente contra muros
CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha
De como andam sempre juntos o amor e a guerra, aproximam e separam, o ódio e o carinho: um muro. Como a canção do Bowie “we can be heroes, just for one day”. Mas há quem não se contente com só um dia ou um momento. Há quem queira mais. Em tempo de guerra “o meu desporto sempre foi sobreviver” porque “a vida não corre ao ritmo dos relógios, sempre certeira.”
De certa forma, Berlim povoou-se de seres trágicos e mitológicos nesse tempo do muro: “A Bluma decorava poemas e dizia-os como quem conversa, os versos eram parte dela como as unhas são parte das mãos ou os olhos são parte da cara…ela era uma pessoa que fazia cair o que dizia, mas com tal delicadeza, que emitia o sinal oposto, contraditório, e nós sentíamos que aquilo subia enquanto caía.” Platónicos que dão “mais valor às sombras do que às Formas”, embora mais tarde se comprove que não será bem assim. Telefones que salvam relações (quando existiam telefones, os telemóveis parecem derrubá-las): “Telefonar sem qualquer motivo é sinal de amor. Quando há motivo, até as Finanças nos ligam.”
Voltando à dicotomia: “O amor pode tudo, dizem, e, de facto, talvez possa, e é aí que está o perigo. De resto, o ódio também pode tudo… haverá amor sem ódio? Talvez, mas é morno.” E, mais à frente: “um amor que não é capaz de fazer umas feridas é apenas um capricho.”
Eram tempos em que o medo governava as almas, fossem heróis ou cobardes, uma coisa tinham todos em comum: medo. “Somos normais, temos medo. Uma pessoa sem medo é um palerma, não é um herói, um herói – tosse – tem medo que se farta”.
Um livro a favor das histórias de amor e guerra e absolutamente contra muros. Mas também um sítio para demonstrar que o amor pode tudo, até pode levar ao crime mais hediondo. Arrancar uma flor? “Como disse Zajac, O amor não é um poema de Petrarca, é apanhar as cuecas do chão.”
Mas também é saber descrever quem se ama: “sei como ela era, ainda sei, apesar do anjo que nos vai apagando uns aos outros. Ela era como atirar uma pedra para a água de um lago, criava uns círculos concêntricos, a Bluma caminhava e havia círculos concêntricos da sua beleza que se espalhavam pela paisagem e a contaminavam temporariamente.”
O amor que gera ódio que gera amor que gera ódio. Esta gente demasiado humana diante de acontecimentos tão improváveis que parecem nem ter existido.
Mas façam o que fizerem, por favor, nunca sejam “daqueles que se dedicam a à incapacidade de ser felizes.”
Já está.
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Afonso Cruz
Sinopse de Amor e Guerra
Companhia das Letras