Adeus, classe média?

Muito
se tem falado sobre a classe média portuguesa, e bastantes e diversos são os
alertas para o risco do seu desaparecimento, asfixiada pelo desemprego,
impostos, baixa brutal de rendimentos, endividamento. É cada vez maior a percentagem
dos que engrossam as fileiras da pobreza, sem meios de subsistência mas
tentando externamente manter a imagem, o status
anterior. Chamam-lhes os “novos pobres”. Elísio Estanque, sociólogo, professor
da faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de
Estudos Sociais, dedica-lhe um pequeno mas extremamente interessante ensaio,
justamente intitulado “A Classe Média: Ascensão e Declínio”.
O
livro está dividido em duas partes. Na primeira, o sociólogo faz uma
sistematização teórica do conceito de classe média, referindo as origens e os
seus precursores, sem esquecer as divergências e controvérsias que o conceito
tem gerado ao longo dos tempos entre as diversas correntes sociológicas, da
visão marxista à weberiana e à perspetiva liberal e funcionalista.
Esta
contextualização teórica permite avançar com mais fundamentação para a leitura
da segunda parte do ensaio, que para muitos será, talvez, a mais interessante,
já que é inteiramente dedicada às particularidades do caso português. Refira-se
ainda a inclusão de um pequeno glossário, muito útil no apoio à leitura.
A
classe média é expressão direta da sociedade. “O seu estado de saúde pode ser
visto como o barómetro que mede a pressão da atmosfera social”, refere Elísio
Estanque, para quem a classe média portuguesa denota sintomas claros de doença.
“Mesmo sabendo que não constitui um corpo homogéneo nem possui uma identidade
própria, é notório que os diferentes segmentos que dela fazem parte enfrentam
atualmente enormes dificuldades”.
A
classe média constitui uma realidade concreta, tem uma história, e a sua razão
de ser prede-se com o processo de desenvolvimento e de modernização das
sociedades.
No
caso português, no início da década de 60 a classe média era quase inexistente,
quer em termos de burguesia proprietária e industrial, quer de setores
assalariados de serviços: 2,2% e 4,9% da população ativa, respetivamente. “Em
síntese, os estratos superiores e médios correspondiam a 12,5% da população
ativa e se lhe somássemos a camada inferior-alta teríamos um total de 28%,
enquanto as classes trabalhadoras não qualificadas, com 71,2%, constituíam o
grosso da população ativa”, salienta Estanque.
O
crescimento da moderna classe média tem uma estreita relação com a
transformação operada em Portugal após o 25 de abril, nomeadamente a
generalização da frequência universitária (que se refletiu na multiplicação das
profissões liberais), o crescimento do sector público – que o sociólogo
considera a principal via de mobilidade ascendente das classes trabalhadoras
devido às políticas centradas na Saúde, Educação, Justiça e Administração
Pública –, o desenvolvimento do Estado social, a litoralização e a concentração
urbana.
Elísio
Estanque destaca que as profundas as alterações na estrutura de emprego – na
década 1960 marcada pelos efeitos dos fluxos migratórios, pela crescente
terciarização e feminização e pela rápida concentração urbana – traduziram-se
num crescimento substancial das taxas de atividade (nomeadamente da mão-de-obra
feminina), na redução rápida do setor primário (de 43,6% da população ativa em
1960 para 11,2% em 1991), no aumento rápido do setor terciário (de 27,5% em
1960 para 51,3% em 1991). Pelo contrário, o sector secundário apenas cresceu de
28,9% em 1960 para 38,7% em 1981, mas “a partir daí iniciou um lento e
irreversível declínio”.
“De
uma sociedade predominantemente rural passámos, em escassas dezenas de anos,
para uma sociedade de serviços, e isso, naturalmente, fez-se sentir na
estrutura das classes”, sublinha Estanque.
No entanto,
acrescenta, esta tendência de mudança estrutural “não foi exatamente fruto de
um processo incremental e harmonioso, mas antes acompanhada de estratégias de
luta e pressões associativas e sindicais, cujas estruturas e sentido
corporativo não deixaram de crescer, sobretudo ao longo dos anos 80 e 90,
assumindo um papel decisivo na reestruturação de profissões e carreiras”.
Mas
nas últimas duas décadas, as transformações no mercado de trabalho “fustigaram
de forma dramática” os direitos e a qualidade do emprego. “O modelo produtivo
que até à década de 1980 pôde sustentar uma classe média que parecia em
consolidação sofreu convulsões profundas que abalaram abruptamente as
expetativas mais otimistas”.
A
fragmentação e precariedade das relações laborais diluem as divisões e
identidades de classe e os símbolos de demarcação perdem significado. O
sociólogo, pertinentemente, questiona: “Não estará a atual tendência de
precarização das relações de trabalho, de dissociação entre condições
profissionais e vínculos laborais, a pôr em causa os critérios tradicionais,
começando a nivelar por baixo e a uniformizar ou reaproximar sob novas
condições de vulnerabilidade segmentos laborais dos serviços e dos
trabalhadores manuais?”
Com
a crise e as pesadas medidas de austeridade, que recaem de forma acentuada
sobre os estratos médios da sociedade portuguesa, Elísio Estanque conjetura que
a classe média “não conseguirá erguer-se da situação difícil em que se encontra
ou, se o conseguir, será para engrossar a contestação e não para voltar à sua
anterior condição acomodada”.
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Elísio
Estanque
A Classe Média: Ascensão e Declínio
Fundação
Francisco Manuel dos Santos, 3,50€ (5€ capa dura)