A ideia de que a singularidade de cada vida é também socialmente construída
1-Qual a ideia que esteve na origem deste vosso livro «De Viva Voz: Ecos Biográficos da Sociedade Portuguesa»?
R-Este livro resulta de um projecto de investigação em sociologia intitulado “Ecos biográficos: triangulação no estudo dos percursos de vida”, que foi desenvolvido no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, do Iscte-Instituto Universitário de Lisboa, com financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. No âmbito deste projecto entrevistámos 16 pessoas sobre as suas vidas, bem como pessoas que lhes são próximas, como familiares, amigos ou colegas, que foram convidados não a falar das suas próprias vidas, como é mais habitual, mas da tal pessoa, entre as 16, que lhe é próxima. Quisemos conhecer os momentos, eventos, pessoas, emoções e sentidos associados a essas biografias. Com base na riqueza destes dados, o livro surge da vontade de dar resposta a três grandes preocupações. A primeira foi a de mostrar a complexidade inerente às vidas vividas, evidenciando o que estes percursos têm de único e singular, por um lado, e de partilhado, por outro. A segunda remete para o desafio de desenvolver uma sociologia de proximidade, com base na ideia de que a melhor forma de compreendermos as realidades sociais é aproximarmo-nos o mais possível delas. E a terceira assenta na ideia de que esta sociologia das pessoas deve ser também para as pessoas. Nesse sentido, apesar de o livro resultar de uma pesquisa sociológica, quisemos que fosse acessível a um público alargado, capaz de se enternecer pelas experiências narradas e reconhecer nestas histórias elementos partilhados com as suas próprias vidas, as de amigos e familiares.
2-De que forma o uso destas biografias pode ajudar a compreender a sociedade portuguesa?
R-Com base na ideia de que a singularidade de cada vida é também socialmente construída, nestas 16 histórias de vida encontramos ecos da sociedade portuguesa. O facto de estas 16 pessoas terem nascido nas décadas de 1940 e 1950 permite-nos perceber como se entrelaçam nas suas biografias as principais dinâmicas de mudança que o país atravessou ao longo deste período. Não tendo ilusões de representatividade, tivemos antes preocupações de diversidade. Encontramos, por isso, nestas páginas, vidas de pessoas de diferentes origens sociais, com percursos escolares e profissionais distintos, que se traduzem também em perspectivas diversas sobre a vida, o país e o que as rodeia. A vida em ditadura, em contextos com mais e menos dificuldades económicas, os fluxos populacionais do interior rural para o litoral urbanizado, a guerra colonial, a transição democrática, a modernização do país, dos valores e estilos de vida, as mudanças na esfera da família: tudo isto atravessa as 16 histórias de vida, em combinações heterogéneas de constrangimentos sociais, contextos relacionais e escolhas individuais. Conseguimos, por isso, ter acesso a fragmentos do todo, da sociedade portuguesa, a partir do particular, das vidas vividas.
Na verdade, não existe em bom rigor outra forma de compreender a sociedade senão a partir das pessoas que, individual e coletivamente, a constroem a partir das dinâmicas que desenvolvem, decisões que tomam, e constrangimentos que ultrapassam ou contornam. Elas são microcosmos da sociedade. Cada indivíduo é um observatório do contexto social e histórico em que vive e simultaneamente uma peça importante na mudança social que atravessa.
3-O livro desenvolve-se em torno de 16 histórias de vida: como foram escolhidas?
R-As 16 histórias de vida retratadas neste livro correspondem às biografias das 16 pessoas que entrevistámos no projecto “Ecos biográficos” e foram escolhidas com base na preocupação em captar, por um lado, o impacto de processos importantes da sociedade portuguesa nas experiências individuais e, por outro, alguma diversidade social. Têm em comum terem nascido num país em ditadura e que atravessou dinâmicas muito intensas e relativamente rápidas de mudança social. Os seus trajectos, no entanto, delinearam-se de forma única. O passado não é uniforme, por muito que agora, de longe, possa parecer ao olhar menos atento. São mulheres e homens que nasceram em diferentes partes do país, mais e menos escolarizados, com um leque vasto de profissões, com configurações familiares diversas, oriundos de famílias com enquadramentos socioeconómicos mais e menos favorecidos. Não representam, assim, nenhum grupo ou categoria social em particular, mas pincelam, no seu todo, alguma da diversidade social, económica, geográfica e profissional que mais determina as desigualdades sociais do país de então e do país de hoje. Não são, porém, relatos contados na primeira pessoa aqueles que são agora publicados. São, sim, histórias contadas por nós a partir dessas narrativas autobiográficas. Esta escrita, muito mais do que descritiva, é intrinsecamente interpretativa e delineia, ainda que de forma intencionalmente discreta, um fio condutor a partir de um olhar sociológico que põe em relação eventos, escolhas e contextos, ou seja, biografia e sociedade.
__________
Ana Caetano/Anabela Pereira/Sónia Bernardo Correia/Magda Nico
De Viva Voz: Ecos Biográficos da Sociedade Portuguesa
Tinta-da-China 15,90€