A Filosofia como uma prática transformadora
1-Qual a ideia que esteve na origem deste livro «Filosofia como modo de vida»?
R- A ideia central do projeto foi a de, na esteira da obra de autores como Pierre Hadot e Michel Foucault, apresentar uma outra imagem da filosofia, para além do entendimento usual da filosofia como um conjunto de enunciados meramente teóricos e abstratos, apartados da vida e do modo como nos relacionamos com ela. Segundo a perspectiva que procurámos recuperar neste livro, a filosofia aparece, ao longo de diversos momentos da sua história – e na antiguidade helenística em particular – como uma atividade eminentemente prática, que diz respeito ao modo como vivemos e como construímos relações connosco mesmos, com os outros e com o mundo, e cujo objetivo central é a auto-transformação. Assim, procurámos apresentar neste volume diferentes formas de conceber a filosofia como uma prática transformadora, capaz de alterar hábitos de percepção, pensamento e ação e, assim, contribuir para a construção de uma vida plena, completa, realizada (aquilo a que os antigos chamavam “felicidade”). No entanto, e talvez paradoxalmente, o livro é fundamentalmente uma tentativa de recolher importantes contribuições académicas sobre o tema, explorando diferentes modos – por vezes divergentes entre si – de pensar a relação da filosofia com a vida e a filosofia como modo de vida. A nossa ideia foi, assim, oferecer ao leitor uma cartografia do debate, disponibilizando pela primeira vez em português algumas das principais opções e posições da literatura contemporânea sobre o tema. Longe de apresentar um programa, a nossa intenção foi promover o acesso a diferentes abordagens para que os leitores possam, eles mesmos, formular o seu próprio juízo sobre as potencialidades e os limites da ideia de “filosofia como modo de vida”.
2-A filosofia surge frequentemente associada à ideia de escritos de autores difíceis com ideias complicadas. A vossa proposta vai num outro sentido: como podemos tornar a filosofia como um modo de vida?
R- Esta é uma pergunta importante, que de certo modo orientou a nossa tarefa enquanto organizadores do volume, mas para a qual não existe uma resposta única. Na pluralidade e diversidade de perspectivas que recolhe, o nosso livro visa precisamente levantar essa questão e enriquecer o aparato conceptual e prático disponível, para que o leitor possa procurar a resposta por ele mesmo. Destacamos ainda assim três maneiras pelas quais diferentes autores e tradições procuram atualizar a ideia da filosofia como modo de vida hoje. A primeira tem uma dimensão metafilosófica e diz respeito à discussão sobre aquilo que é a filosofia, o que significa filosofar e o que fazemos quando dizemos que filosofamos. Nessa discussão, os autores visam reavivar um modelo da prática filosófica no qual a filosofia aparece não apenas como atividade teórica, mas também como prática encarnada cujo objetivo último é a auto-transformação. Em segundo lugar, essa imagem transformada da filosofia tem um impacto significativo no modo como estudamos e compreendemos a história da filosofia. Nesse sentido, a noção da “filosofia como modo de vida” aparece como ferramenta metodológica que pode ser utilizada para a escrita de uma outra história da filosofia, que tem como ponto de partida já não apenas as teorias, mas os exercícios, as práticas e as formas de vida propostas pelos vários filósofos ao longo da história. Por fim, o livro aborda também possíveis usos do modelo da filosofia como modo de vida num sentido a que chamámos psicagógico, e aqui diferentes leituras e apropriações são possíveis: algumas enfatizam o paradigma terapêutico da filosofia antiga, outras focam-se na potência desta diferente noção da filosofia para renovar as formas de ensino e aprendizagem filosóficos, e outras ainda propõem utilizar algumas das ferramentas desenvolvidas em diferentes épocas desta tradição filosófica para confrontar questões sociais e políticas do presente.
3-Nesta obra, os vários autores revisitam as ideias de grandes nomes da filosofia e podemos perceber que o tema (modo de vida) percorre vários séculos, de Séneca a Foucault: há um fio condutor neste percurso ou podemos encontrar formas muito diferentes consoante o filósofo?
R- A ideia da filosofia como modo de vida é sem dúvida multifacetada e plural, no sentido em que se materializou de diferentes formas e em diferentes configurações ao longo da história, dependendo do contexto social, cultural, político e filosófico em que cada filosofia se desenvolveu. Desta perspectiva, é inegável que a “arte da vida” antiga ou as “terapias da alma” das escolas helenísticas são muito diferentes dos paradigmas que encontramos em Montaigne, Diderot, Nietzsche, Bergson ou Cioran. Se há algo, porém, que se mantém constante e permite agregar todos estes filósofos sob a ideia da filosofia como modo de vida é precisamente a recusa de um discurso sistemático e a proposição de uma ideia pragmática da filosofia, isto é, uma concepção da filosofia que a entende como uma atividade, um exercício, um conjunto de práticas que diz respeito à forma como se vive, e que encontra a sua “substância ética”, para falarmos com Foucault, na vida dos indivíduos. Utilizando uma expressão de Victor Goldschmidt, cara a Pierre Hadot, todos estes autores partilham a ideia de que a filosofia deve formar, mais que informar. E foi essa mesma ideia fundamental, clara no conceito de “exercício espiritual”, tal como compreendido por Hadot, e no de “espiritualidade”, tal como aparece na obra de Foucault, que adotámos como fio condutor do nosso livro. Precisamente por este fio condutor não ser unívoco, optámos por apresentar e disponibilizar ao leitor diferentes apropriações da noção da filosofia como modo de vida.
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Federico Testa/Marta Faustino (org.)
Filosofia como Modo de Vida: Ensaios Escolhidos
Edições 70 25,90€