A caderneta de lembranças de A. M. Pires Cabral

[Foto: Poetria]

CRÓNICA
|Rui Miguel Rocha

Não é um livro de lembranças, é uma conversa connosco e, ao mesmo tempo, com deus. Deus maiúsculo, deus minúsculo, activo, inactivo, existente ou não. O silêncio que nos aquieta “Há momentos em que tudo o que desejo/é o silêncio e seu bálsamo. Momentos/que a própria música conspurcaria.” Passar pelos anos e pelos meses “Quem deu a janeiro tais maquinações,/tão longo catálogo de facas”, em janeiro entardece cedo “Ou como se alguém com negligência/tivesse esfolado um animal/nos incertos territórios do poente,/deixando o céu salpicado de sangue.”
Viagens e cidades, a vida que parece estar sempre a meio “Mas ainda é tão cedo. Ainda estou/a meio do banquete de viver.” As coisas simples, voltar à terra, ao tamanho da terra quando nos aproximamos “É assim o granito: perdurar/está-lhe na massa do sangue.” Coisas e seres simples, os animais, também eles donos da terra, do silêncio e de algum deus “Em qualquer dos casos solto os cães/da imaginação que, ladrando alegremente,/festejam a liberdade.” E assim também as ervas para as maleitas do corpo e do espírito “Sou útil, pois, em duas frentes: curo/os achaques do fígado e aquieto,/noutra parte do corpo (que ninguém/sabe ao certo onde é que fica,/mas é inegável que está lá),/a insaciável fome de beleza”.
Uma das conclusões a que acabaremos por chegar é a da nossa pequenez face a tudo “E depois? Porventura/serei menos eu por ser tão pouco?” Mas também somos o que resta da pureza que fomos “porque aquilo que risca o cristal/que a criança é – risca-o para sempre.”
E acabo juntando duas delícias:
“Farás o favor de, quando for oportuno,/ter esta confidência em consideração.”
“Eu não fui sempre assim. Eu fiquei assim/no dia em que encontrei no meu pratinho/de arroz-doce/um pêlo do bigode de Giordano Bruno.”
Também me aconteceu.
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A. M. Pires Cabral
Caderneta de Lembranças
Tinta da China  13,90€

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A. M. Pires Cabral na “Novos Livros” | Entrevistas