Etty Hillesum com uma verdade profunda e destemida

CRÓNICA
| Daniela Costa

Havia um contentor de resíduos das obras no passeio e duas vizinhas conversavam em frente à porta, estranhando ver ali uma turista a espreitar. Não serei com certeza a única a deambular junto à casa onde Etty Hillesum vivia quando escreveu o seu Diário entre 1941 e 1943, mas não deve ser um fenómeno comum.
À parte de uma pequena placa junto à porta de entrada, mais nada assinala o lugar.
Assim que soube que ia aos Países Baixos, organizei tudo de modo a regressar por Amesterdão unicamente para ir ver a casa da Rua Gabriel Metsu.
Estou a falar de um dos livros mais importantes para mim, um dos que mais vezes reli, um dos que mais me tem transformado. “Não te trago somente as minhas lágrimas e pressentimentos temerosos, até te trago, nesta tempestuosa e parda manhã de domingo, jasmim perfumado”, diz Etty a Deus. Ela, que era perseguida por ser judia, conseguia encontrar num pedaço de céu azul razão suficiente para querer crescer e expandir-se. Libertou-se do rancor e fundiu-se com a beleza de um ramo de rosas “precisamente tão reais como a miséria a que assisto num dia”.
Para mim, este livro ultrapassa em muito a circunstância histórica da perseguição aos judeus na Europa ou a dimensão espiritual de uma mulher que encontra no Deus católico um refúgio e uma fortaleza.
É também um manifesto feminista “talvez a genuína, interior emancipação feminina ainda tenha de começar. Ainda não somos verdadeiramente indivíduos, somos fêmeas”. Ela que vivia o erotismo com volúpia e que libertou a sua vida sexual de estereótipos e papeis sociais. Que sofria por amor e lhe parecia ser mais belo o amor a todos do que o amor a uma só pessoa.
Um manual de despojamento “agora que não quero possuir mais nada e estou livre, agora possuo tudo, agora a minha riqueza interior é infinita”. E uma séria incursão pela beleza das palavras e seus significados “o móbil da minha escrita: afastar-me de toda a gente em silêncio, com todos os tesouros que eu reunira, e depois escrever e guardar tudo só para mim e desse modo desfrutá-los.”
Ela que foi o “coração pensante da barraca” queria ser a cronista do seu tempo. Sentia-se num estado preparatório, mas a morte apanhou-a no campo de concentração. Talvez este diário inacabado seja, ainda que imperfeito, a mais bela obra que ela nos poderia deixar.
Porque nele pulsa uma verdade profunda e destemida.
Li excertos do Diário em frente à casa da Etty e entrei em modo de oração. Apreciei a vista que ela tinha das suas janelas. Peregrinei por lugares que refere no diário e depois deixei-me absorver pelas distrações da cidade e voltei a ser uma turista preocupada em não ser atropelada por uma bicicleta.
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Etty Hillesum
Diário 1941-1943
Assírio e Alvim  22,20€

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