Francisco Mota Saraiva | Prémio José Saramago

Francisco Mota Saraiva recebeu o Prémio José Saramago (2024) pelo seu romance “Morramos ao menos no porto”. Sobre o livro distinguido explica: “Gosto de pensar que este livro é como uma espécie de declaração de princípios em que afirmo aquilo que quero fazer na literatura embora não seja mais que isso mesmo – uma declaração de princípios”. Enquanto tem coisas já escritas e ideias de que ainda não quer falar, vai dizendo que entende “este livro como uma espécie de proémio da obra que se há de fazer”.
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P-Como recebeu o Prémio José Saramago 2024?
R-Têm-me dito que alguns escritores galardoados com o Prémio Saramago tenderam a descrever o momento em que o receberam como se precedido de dias (ou de fases das suas vidas) de menor alegria, rodeados de uma aura relativamente obscura, de algum desespero e desalento; e é engraçado que comigo também não foi muito diferente: estava em casa, com o meu filho doente, num dia frio, de chuva e de vento, como quando a vida nos apetece pouco. Aliás, não tinha sequer a expectativa de vir a receber o Prémio uma vez que a data do seu anúncio, e respectiva cerimónia de entrega, tinha já sido agendada, o que não deixou de me causar alguma tristeza e, devo dizer, se não frustração, desconsolação. Mas não sei se é, se foi, exactamente assim: se existe, ou existiu no meu caso, propriamente esse ambiente quase funesto que precede o anúncio do Prémio Saramago; creio, antes, que o momento em que sabemos que somos o novo vencedor é um momento de tão grande alegria, de tal iluminação e êxtase, que tendemos a obscurecer tudo o que estava antes. Nesse dia, não se recebe um prémio, recebe-se uma herança.

P-Falemos da sua relação com a obra de José Saramago: qual o seu livro preferido?
R-Habitualmente, tenho muita dificuldade em fazer esse exercício quando se trata de autores pelos quais sinto enorme afecto literário. Aliás, os grandes escritores têm a particularidade de não se esgotarem num único livro, antes multiplicarem-se no conjunto da sua obra, como é o caso paradigmático de Saramago. De todo o modo, não posso deixar de assinalar o Ano da Morte de Ricardo Reis. Não sei se é o meu livro preferido de Saramago (bom, talvez seja…), mas a sua leitura foi um baque, uma pancada imensa. Tinha 15 ou 16 anos quando comecei a escrever algumas coisas de maior fôlego (contos, sobretudo) e o Ano da Morte de Ricardo Reis, a minha primeira leitura de Saramago, mostrou-me que era possível fazer algo completamente diferente com a literatura, que ela era mais moldável do que eu julgara até então; e, para quem está a dar os primeiros passos na escrita (mesmo que muito imberbe), perceber que pode escrever para lá das margens, como sucede nesse livro de maestro, se não é uma inspiração, é, pelo menos, um certo consolo. Não sei se há alguma coisa de Saramago no traço que utilizo para a minha escrita, mas, de vez em vez, peço-lhe cores emprestadas, e agradeço-lhe por isso, recordando, ainda, aquele ano da morte de Ricardo Reis.

P-Há algum livro de Saramago que gostava de ter escrito?
R-Não quero ter a arrogância de dizer que não há sequer um livro de Saramago que não gostasse de ter escrito, sobretudo considerando que Saramago foi um grande contador de histórias, o que, para um escritor contemporâneo, não deixa de ser deveras notável. Mais do que ter escrito algum dos seus livros, inspira-me a honestidade e a coragem que Saramago sempre levou para a sua escrita: nunca deixou de dizer a sua palavra, de povoar o seu lugar e o seu tempo a seu modo, nunca se vergando aos padrões, aos cânones, às críticas, aos ditames da inveja e dos ignorantes; e é essa mesma honestidade e coragem que procuro ter: escrever também com essa plenitude, como Saramago – sem medo, mas, aqui, do meu lugar.

P-Sente que agora, depois do prémio, está mais perto de concretizar o seu sonho de se tornar escritor a tempo inteiro?
R-Não sei quem me fará escritor. Não é um ofício que se possa aprender numa faculdade, obter-se um diploma, pendurá-lo na parede, abrir uma loja para a rua e apregoar-se o produto. Aquela ideia de um “quarto só seu”, da Virginia Woolf, é algo que qualquer artífice das palavras ambiciona, obviamente; e sei que, mais tarde ou mais cedo, terei de levar adiante esse conceito mais seriamente a fim tornar-me escritor a tempo inteiro no sentido quase operário para que a minha escrita tome os lugares que quero que ela tome, mas, antes disso, é preciso que façam (quem?) de mim escritor. Em todo o caso, há já alguns anos que penso e ajo como escritor, no sentido criativo, no sentido em que todos os meus botões estão ligados e activos para a criação literária – se não puder ser honesto com mais nada que, ao menos, o seja com a minha escrita à qual não quero – nem posso – nunca conceder. Façam de mim escritor e eu far-me-ei escritor.

P-Nesse contexto, além da ficção podemos vir a tê-lo também como autor de poesia ou teatro ou ensaio?
R-O meu lugar é o lugar da narrativa, mais ou menos lírica, mais ou menos dramatúrgica, mais ou menos ensaística. Deixo o resto para quem sabe.

P-O que representa, no contexto da sua obra literária, o livro “Morramos ao menos no porto”?
R-É precoce falar de um contexto, menos ainda de uma obra literária. Julgo que estou longe de poder reflectir sobre asserções como esta. Interessa-me, sim, a depuração da linguagem, um maior domínio dos problemas técnicos, e, acima de tudo, a afirmação de uma voz que sei mais ou menos qual ela é, mas que ainda não está exactamente a meu modo. Gosto de pensar que este livro é como uma espécie de declaração de princípios em que afirmo aquilo que quero fazer na literatura embora não seja mais que isso mesmo – uma declaração de princípios, que, tal, como qualquer declaração, e como qualquer princípio, é apenas uma afirmação abstracta, porém longe de ser convenientemente concretizada e, mais que afirmada, atestada, fixada. Entendo este livro como uma espécie de proémio da obra que se há de fazer.

P-Qual a ideia que esteve na origem do livro?
R-E se um chão fosse vivo? E se debaixo desse chão nos falassem os nossos mortos? E se quiséssemos unirmos aos nossos mortos debaixo desse chão? Depois, fui construindo em camadas: escavando, alisando, calcando, até poder caminhar seguro sobre a superfície desse chão que, contudo, em momento algum, se torna regular, tampouco se cala. Os mortos ganharam vida e ganharam voz, ainda que defuntos se mantenham e o seu falar seja apenas um murmúrio vago e oco debaixo de nós.

P-Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
R-Para além do que está escrito? Estou a escrever… Mas não me apetece falar sobre isso. Ainda estou muito nu; seria um desplante da minha parte expor-me dessa maneira.
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Francisco Mota Saraiva
Morramos ao menos no porto
Quetzal  17,70€

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